“Sim senhor”, Ivan pensou ter meneado a cabeça
em tom afirmativo.
As últimas unidades de quarentena
foram preenchidas. Certa paz reinou na estação de recepção. Mesmo assim, todos
se mantinham de prontidão para o próximo surto. Nas semanas que se sucederam à
morte do garoto, Ivan não viu mais o motorista no CS. Não teve tempo de
conjecturar o porquê de sua ausência. Em um lugar com as dimensões da Sede
Governamental, onde era comum o remanejamento de funções, ele poderia estar em
qualquer lugar.
Com a calmaria, foi convocado a
uma reunião para receber instruções de trabalho nas alas de quarentena. Penso que
iria integrar o corpo de funcionários voluntários para a nova ala, mas foi
escalado para trabalhar na ala AB. Ela seguia o padrão das outras do Centro de
Quarentena: um corredor largo, artificialmente iluminado, meticulosamente
asseado, ladeado pelas portas das células de quarentena enfileiradas lado a
lado. Exatamente duzentas células: ABs positivos de um lado do corredor, ABs
negativos do outro. No meio do corredor havia uma subestação dividida em quatro
partes: refeitório, sala dos agentes, sala de profilaxia e sala de medicamentos.
A sala dos agentes era um refúgio para a reciclagem interior em meio à rotina
de trabalho. Ampla e vazia, continha apenas alguns sofás de cor branca,
espalhados aqui e ali. As paredes, também brancas, eram vazadas por
translúcidos azulados que tingiam a luz que entrava. Nesse ambiente, os agentes
passavam os períodos de folga concentrados em silêncio. Contígua à sala dos
agentes, ficava uma das dezenas de salas de profilaxia do Centro de Saúde, com
duchas e toda espécie de material descartável como agulhas e seringas. A sala
de medicamentos ficava ao lado. Dentro dela, farmacêuticos metódicos passavam o
dia com o nariz espetado em monitores, registrando quantidades e calculando
doses em meio a tambores de cápsulas e pílulas que aguardavam a distribuição.
Em um ambiente como o CS, que abrigava centenas, cada qual necessitando de
drogas específicas em horários específicos, distribuir o comprimido certo na
dosagem certa e no horário certo ao interno certo consistia tarefa árdua e um
desafio permanente. Tal tarefa seria quase impossível sem o auxílio de um
equipamento especial. Um programa de computador indicava à máquina a
necessidade de cada interno. Os farmacêuticos abasteciam tubos de comprimidos e
inseriam na máquina. De uma das pontas dela saía uma tripa de plástico
seccionada em segmentos contendo as dosagens, etiquetados com o número da
célula de quarentena e o horário da administração.
Um dos extremos do
corredor era barrado pela porta que dava acesso ao pátio. O abrir e fechar dela
seguia horário estabelecido para o banho de sol dos internos. O pátio ficava estrategicamente
situado na face sul da Sede Governamental, de acordo com o ponto cardeal de
nosso hemisfério que emitia mais luminosidade durante as quatro estações do
ano. No extremo oposto do corredor, havia outras duas portas paralelas, feitas
de um vidro muito resistente, separadas pela distância de dois metros.
Funcionavam alternadamente sob o comando da central de controle do outro
lado. Nunca eram abertas ao mesmo tempo,
nem para o trânsito de funcionários. Quem viesse de um dos lados delas era
obrigado a se postar em frente à primeira, sendo identificado pela varredura de
um scanner no teto. Aberta, ingressava-se no espaço entre portas, a segunda
abrindo somente após a primeira ser fechada para se obter ingresso no setor
oposto. Esse tipo de porta separava os corredores de quarentena da estação
central, um círculo de grande diâmetro a partir do qual divergiam todas as alas
num esquema de raios; cada corredor um raio, convergindo na estação central
circular. A estação central era o núcleo nervoso do complexo de alas, e a ilha
em seu centro o cérebro. A postos na ilha, vinte e quatro horas por dia, a
excelência científica de nossa época se alternava em turnos, formando uma
equipe multidisciplinar que coordenava e executava os trabalhos de conversão
sanguínea. Na equipe figuravam geneticistas, químicos, microcirurgiões,
exobiólogos e alguns indivíduos com poderes sugestivos para além da tecnologia.
Caso fossemos determinar um símbolo, entre tantos, para o avanço tecnológico de
nossa sociedade, a ilha do centro de quarentena seria o ícone perfeito. Na
verdade o padrão estrutural do Centro de Quarentena fora inspirado na roda raiada
vermelha sobreposta ao fundo azul da bandeira de nossa província. Na estação
central, bem em frente às duas portas de cada ala, ficava a mesa de comandos
com monitores, local onde um agente controlava as câmeras do interior das
células. A abertura e fechamento das células também partiam dela.
Toda a estrutura para conversão
sanguínea ficava num andar abaixo do setor de alas de quarentena. Aquele que
devesse ser convertido era encaminhado da célula para o corredor e deste para a
estação central. Reuniam-se a ele a equipe multidisciplinar seguindo rumo pelo
único corredor sem células de quarentena do complexo de alas, o corredor dos
elevadores.
Os
internos faziam as refeições em grupos alternados, de acordo com o número de
lugares disponíveis no refeitório, contíguo à sala dos agentes. Por motivos de
higiene, não havia cozinha: todo o cardápio vinha de fora do CS, em porções
previamente embaladas e balanceadas. Logo Ivan reparou que o refeitório não
chegava a lotar, pois nem todas as células eram abertas nos horários de refeição.
“Alguns
internos sofrem de inapetência e passam por um processo diferenciado de
nutrição”, informou o chefe da ala AB, quando convocou Ivan para auxiliar tal
processo.
“Hora
da última leva!”, os agentes foram avisados pelo chefe da ala, após o último
grupo de internos deixar o refeitório.
Seguiu
em marcha pelo corredor uma equipe de vinte agentes, rumo às células de
quarentena. Vestindo seus macacões hermeticamente vedados, os agentes foram separados
em duplas, distribuídas em frente à porta das células dos que não haviam
almoçado ainda.
“Preparem-se!”,
partiu do chefe, com quem Ivan formava dupla na ocasião. “Vou dominá-lo. Você
coloca a presilha plástica”, o chefe instruiu Ivan. Foi dada a ordem, as portas
se abriram. O chão da célula estava alagado, e o vaso sanitário transbordava. O
interno investiu imediatamente contra a saída, mas, com um movimento de lado, o
corpanzil do chefe barrou o caminho. Empurrado de volta para dentro, o interno escorregou
e caiu sentado no piso molhado. Ivan puxou uma presilha antes que pudesse se
erguer. De compleição esquálida, o homem tentava lutar, oferecendo resistência
de acordo com seu estado debilitado. Entre respingos, finalmente foi
imobilizado. Arrastaram-no ao corredor, aguardando as células serem esvaziadas.
Eram
dez internos ao todo. Foram encaminhados diretamente à sala de profilaxia da
subestação. “Alguém além desse aqui se sujou?”, perguntou o chefe à equipe de
agentes, apontando para o interno que tirara da célula. O macacão do interno
estava encharcado nas costas. Como fora o único a se sujar, foi encaminhado
para uma higienização antes da refeição.
Ivan torceu
o registro. Apontou a mangueira na direção do interno, previamente posicionado sentado
no chão, de costas para uma quina de parede da sala de profilaxia. Mas ele
ainda resistia. Abaixava a cabeça e se atirava no piso para escapar do potente
jato d’água. O chefe chegou para ajudar. Colocou o interno na posição inicial, segurou
sua cabeça firmemente com as duas mãos e, com os braços bem esticados para não
se molhar, a manteve voltada para o jato de alta pressão. “Não tenha pena? É só
água. Não podemos correr riscos de contaminação por parasitas”, disse o chefe. O
homem tossia e se afogava, mas a água limpou seu rosto. Depois de devidamente
seco e esterilizado, os dois o conduziram a uma fileira de macas com correias
de couro onde os outros internos aguardavam para serem posicionados. Próximo,
havia uma mesa sobre a qual jaziam rolos de sondas, agulhas descartáveis, ampolas
e seringas, algumas de bom diâmetro. Porém, faltava uma maca, de modo que tiveram
que deixar o interno que limparam sentado numa cadeira.
“Tudo
em ordem agora? Podem deitá-los nas macas.”
Sempre
em duplas, enquanto um dos agentes procurava deitar e conter os internos que
ainda resistiam, o outro apertava bem as correias. Trabalhando com zelo, os
agentes cercavam a fileira de macas, prendendo pulsos tornozelos e cabeças bem
firmes. Todos imobilizados, a etapa seguinte era a introdução da sonda alimentar.
O chefe
deixou Ivan por um instante para auxiliar outra dupla a prender um interno mais agitado. “Fique parado. Ai! Diabos! Quer
morrer de inanição?”, bradou o chefe quando o interno lhe mordeu um dedo. “Esse
aqui vai dar trabalho. Pegue uma mordaça em cima da mesa”, ordenou a outro
agente. Devidamente amordaçado foi fácil começar a introduzir-lhe o tubo pelo
nariz. “Peguem as seringas! Distribuam as seringas! AA01! Como ele está?”, Ivan
foi perguntado sobre o interno que haviam deixado na cadeira.
“Não
opôs grande resistência, senhor.”
“Deixe-o
aí e pegue o tambor de nutrição! O quê? Não buscaram ainda? AA01 trate logo de
ir busca-lo!” Nem bem Ivan havia terminado a colocação da sonda, soltou a
cabeça do interno que pendeu à frente num baque surdo do queixo contra o peito.
Voltou logo em seguida, com um balde transbordando de uma ração amarelada na
consistência de mingau.
“Iniciem a nutrição! O que há com esse aí?”,
perguntou novamente o chefe sobre o interno da cadeira. O homem jazia
desfalecido, com os punhos atados para trás. De seu nariz pendia a ponta da
sonda, gotejando. O chefe foi até ele, ergueu sua cabeça pelo queixo e a
chacoalhou. “Adrenalina nele!” Logo em seguida, o homem já estava bem acordado.
Como alegassem ser o mais fraco de todos, seria o primeiro a ser alimentado, e
com quantidade dobrada de ração.
Um dos
agentes foi encarregado de encher as seringas. Pegava uma da mesa, mergulhava a
ponta na ração e puxava o êmbolo até que enchesse bem. Esticava o braço e a
entregava a um dos agentes de cada dupla.
Não
havendo como imobilizar seu interno por meio de correias como os outros, Ivan procurava
manter-lhe a cabeça imóvel para que o chefe o alimentasse. De repente, balançou
a cabeça num tranco, respingando a papa amarelada para todos os lados, enquanto
se agitava em espasmos. “Vocês não desistem mesmo, hein? AA01, dê um jeito
nele!” Ivan enlaçou o interno com uma chave de braço, pressionando de acordo
com a sua resistência para mantê-lo o mais imóvel possível. Não houve mais
reações bruscas, pois, bem seguro, a ração lhe descia pelo tubo ligado
diretamente ao estômago. Enquanto recebia alimento, o homem lacrimejava de
olhos fechados.
Todos
alimentados, como o balde não estava vazio, as seringas retornaram ao início da fila para uma segunda porção,
enquanto a primeira ia assentando nos estômagos.
“Prefiro salvar-lhes a vida a deixá-los
morrer. Em nossa ala ninguém morre de inanição”, completou o chefe.
Na manhã seguinte, A A01 foi escalado para auxiliar no banho de sol. Conduziu alguns internos pelo corredor até o pátio, onde já havia outros.
“Ora se não é o frenólogo do Conselho!... Saudações. Mundo pequeno, hein.”
A A01 se virou e viu um homem sentado no chão, escorado à parede, encarando-lhe. Não o reconheceu de pronto. Tão pouco ficou surpreso, pois em anos de trabalho havia lidado com centenas daquela espécie. Também não respondeu, pois era praxe evitar assuntos supérfluos com internos. Permaneceu olhando friamente para o desconhecido, procurando algum sinal que o identificasse pelo crime. Insatisfeito, foi até ele e lhe torceu o pulso. O que viu atestou sua suspeita: uma cicatriz no antebraço, na posição do chip. A implantação do chip subcutâneo baniu o uso de papel moeda, cartões de crédito e documentos de identificação, reduzindo o número de assaltos, mas, na banda desajustada da sociedade, havia indivíduos violentos ao ponto de realizarem sequestros relâmpagos com o intuito de transplantar chips. A extração de chips tornou-se crime corrente. Feita de forma primitiva, consistia em rasgar a própria pele para arrancá-lo com os mais variados fins. O mais frequente era aquele em que o criminoso sequestrava alguém muito abastado para arrancar-lhe o chip e transplantá-lo em si próprio. A partir daí, o raptor deixava a vítima escondida por algum tempo ou a matava, passando a usufruir de seus créditos enquanto o chip roubado não fosse bloqueado. Menos frequente, porém mais perversa, era a pratica de amputar o braço inteiro da vítima. Consistia tal crime infração multíplice de sequestro, falsidade ideológica e roubo.
A A01 Não recordava exatamente o grau de periculosidade daquele indivíduo, mas não era dos extremos. Os mais violentos eram cremados imediatamente após os julgamentos.
“Não se lembra de mim?”, continuou o homem, do solo. “Fui acusado de tirar o chip depois de ser preso numa batida enquanto caminhava pela rua.”
“Todos aderem de bom grado às melhorias tecnológicas, mas há quem não consiga viver em sociedade”, observou A A01, tentando desestimular moralmente o condenado.
“Não fiz mal a ninguém. Apenas eliminei a possibilidade de ser rastreado.”
“Porque quer evitar ser rastreado, não soa idôneo.”
“Não há nada como a sensação de ir onde quer que seja sem precisar desabotoar a camisa ou arregaçar a manga para dar satisfação às máquinas.” “O que o senhor chama de “satisfação às máquinas”, existe em prol da segurança pública”.
“E os primeiros Anônimos? Onde estava a segurança deles? Só porque disseram não à conversão? Por que não foram encontrados se estavam todos devidamente chipados?”. O homem fez referência aos primeiros Anônimos. Há algum tempo, bem no início da epidemia, quando a conversão se tornou lei, alguns indivíduos aptos que recusaram tratamento foram isolados e desapareceram de uma hora para outra.
“A conversão é lei para os infectados que optarem por viver em qualquer lugar que não seja nas fazendas ou bem distante do meio urbano. Se encontrarmos algum perambulando nos limites internos da cidade, faremos de tudo para preservarmos sua vida.”
“É o caso dos que fazem greve de fome?”
Estas palavras tiveram um profundo efeito no cérebro de AA01. Por um instante, teve que disfarçar o constrangimento pela lembrança dos procedimentos alimentares que auxiliara no dia anterior. Ficara meio confuso desde então. Certa insistência crítica quanto os métodos usados na ocasião começava a perturbá-lo. Disfarçou o incômodo e reagiu conforme a condição de autoridade que o título de agente de saúde lhe conferia:
“Seja como for, prefiro salvar a vida de um homem a deixá-lo morrer de inanição.”
“Realmente, os agentes são bem zelosos! Mas onde fica a liberdade de escolha daqueles seres-humanos?”
“Aquelas pessoas precisam de cura.”
O interno fixou o muro do pátio por um instante, avaliando o que responder.
“Compreendo seu idealismo e dedicação à sociedade, mas o senhor realmente acredita que a tutela da Sede Governamental e de seu braço, o Centro de Saúde, existe em função de curar a população? Será que realmente existe esse tal de vírus letal? E se existir, de onde veio? O tratamento contra ele é eficaz? Pode-se confiar no CS?”.
A expressão facial de A A01 desenhou-se como a de quem ouve um disparate. Então se deu conta de que seus pensamentos certamente estavam sendo acompanhados; não era adequado manter tal tipo de conversa com um interno.
“Há muitas vozes em nossas cabeças”, continuou o interno ao perceber a agitação de A A01. “Apesar de terem colocado um chip dentro delas, existe uma forma de burlar esse censor onipresente. Para quem está consciente não há a necessidade de autoafirmação, de ficar racionalizando a repressão do sistema. Você é vigiado por aquilo que fica matutando, aquilo que reforça neuroticamente. Adquira uma postura de neutralidade, se torne uma testemunha frente a seus pensamentos e fique invisível ao chip neural. E não tenha medo de ficar como uma folha ao vento, pois se deixar de pensar por um minuto em seus deveres e ignorar aquilo que foi condicionado a pensar, uma voz sutil estará ali, lhe indicando a hora certa de agir e realizar. Essa voz não vem da mente, Ela não pode ser captada pelos sensores dos censores”.
Nesse instante, alguma coisa esbarrou no ombro de A A01.
“Saia da frente!”. Um grupo de agentes ergueu bruscamente o interno. “Vire-se! Rosto colado na parede!”, ordenou o líder do grupo enquanto lhe atava os punhos. Era uma batida. Um agente rasgou o macacão do interno na altura da pelve, enquanto outro calçava luvas de borracha. Este extraiu um pequeno cilindro metálico escondido no ânus do interno.
“O que é isto?”, indagou o agente.
“Tecnologia de retaguarda.”
O cilindro foi borrifado com um spray esterilizante. Rosqueou-se a tampa, a ponta de um rolinho de papel apareceu. O agente abriu o papelzinho para ver o que era e constatou que havia algo escrito.
“Esse tipo de material não é permitido no Centro de Quarentena. Além do mais com esse tipo de atitude anti-higiênica.”
“Sei que não, por isso escondi lá”, observou o interno em tom sarcástico.
“A A01, pegue o material, traduza o que está escrito e faça uma cópia. Depois jogue o original no incinerador da sala de profilaxia.”
Enquanto conduzia o material a ser destruído, A A01 leu o conteúdo do papel:
Mens sana in corpore sano
Deve-se pedir em oração que a mente seja sã num corpo são.
Peça uma alma corajosa que careça do temor da morte,
que ponha a longevidade em último lugar entre as bênçãos da natureza,
que suporte qualquer tipo de labores,
desconheça a ira, nada cobice e creia mais
nos labores selvagens de Hércules do que
nas satisfações, nos banquetes e camas de plumas de um rei oriental.
Revelarei aquilo que podes dar a ti próprio;
Certamente, o único caminho de uma vida tranquila passa pela virtude.
Enquanto
aguardava há algum tempo, Ivan havia ficado entregue aos próprios pensamentos,
como de costume.
“Como vai o senhor?”, ele ouve a voz.
“Bem, senhor.”
“Foram captadas oscilações
anômalas em seus processos mentais. Gostaríamos de deixá-lo a par”.
“Algo grave, senhor?”
“Como o senhor já deve ter
reparado, a política de prevenção da SG, em quaisquer setores de sua alçada, é
regida pela agilidade. O monitoramento de seu fluxo mental acusou vibrações de
dúvida por volta de determinada data. Tem algo a dizer a respeito, senhor A
A01?”
Ciente de que andara envolvido,
involuntariamente, com questões de crítica acerca dos procedimentos
profiláticos, Ivan esquiva-se com uma explicação:
“Senhor, estive em conversa com
um dos internos, alguém que examinei há algum tempo no tribunal do Conselho. É
um sujeito subversivo. Verbalizou um monte de disparates, aos quais reagi.
Também traduzi material proibido que fora apreendido com ele na ocasião de
nossa conversa.”
“Mesmo assim, o monitoramento não
mente. Temos identificado as oscilações de suas ondas cerebrais no padrão da
dúvida. O senhor afirma que o interno em questão seja subversivo. Caso tenha
surgido algum questionamento de sua parte sobre o que ele dissera, é sinal de
que o senhor não o ignorou totalmente... Esse tipo de afetação provocada por
internos em um agente não tem cabimento nas atividades desse centro.”
Pego de surpresa, Ivan se vê
encurralado, mas procura afirmar sua lealdade à instituição:
“Sim senhor, elementos
subversivos são um ameaça tão grande à sociedade quanto a epidemia. Suas
teorias não têm sentido. E minhas reações de dúvida provêm dos absurdos que sou
obrigado a ouvir desses desajustados que estamos tentando curar”, diz em tom de
austeridade.
Momento de silêncio. Ivan resiste
petrificado em sua expressão de seriedade, na expectativa da resposta.
“Muito bem, senhor A A01. Retorne
à sua ala.”
As conversões sanguíneas seguiam. Na ala AB o clima era
de normalidade. A maioria dos internos reagia bem à remodelação de fator
sanguíneo, podendo voltar à vida normal em pouco tempo. Havia aqueles cujos
organismos não aceitavam prontamente a conversão, mas nada que não fosse
ajustado com a ingestão de drogas. O acesso ao complexo de conversão do nível
inferior era restrito, mas o que escutara da equipe de médicos ao longo dos
meses em que conduziu internos pelo curto trajeto entre a estação central e
aporta do elevador, deu a Ivan certa noção dos procedimentos de conversão.
A conversão consistia,
basicamente, em extrair uma célula da medula óssea. Uma nova avaliação de
antígenos era feita para atestar o fator sanguíneo do indivíduo. Em seguida,
buscava-se no cromossomo número 9 a sede o lócus ABO para reprogramar a
atividade das glicosiltransferases. A reprogramação era feita em curto prazo,
mas a forma de execução é o elo do processo reservado ao conhecimento dos
especialistas. Circulavam rumores de que era feita a partir de frequências
vibratórias. Também existia a necessidade de se manipular o gene relativo à
transmissão de informações mediante a reprodução celular para que a célula não
fosse rejeitada depois de reinserida, mas que influenciasse a mutação de todas
as células que sofressem influência direta e indireta do tipo sanguíneo do
indivíduo a ser convertido.
Alguns indivíduos não respondiam
bem à conversão, variando os casos entre aqueles que necessitavam de mais
tempo, os que só podiam manter a conversão pela ingestão permanente de drogas
variadas, e os raros casos de morte.
A vida clama pela vida, pela manutenção e reprodução de si. O instinto de sobrevivência é a força motriz do universo.
Assim iniciou a redação do discurso que proferia uma vez por mês em rede, ocasião solene em que todos paravam o que estivessem fazendo para ouvir o pronunciamento, fosse no trabalho, nas escolas ou na rua.
Avaliando o que escrevera, o diretor da Sede Governamental ficou satisfeito com a forma como iniciara. Tinha em mente que um bom discurso deveria ser abrangente. Ninguém de intelecto mediano, muito menos um governante poderia ignorar a relação entre política, ciência e espiritualidade. Tudo estava fundido. Continuou a escrever:
No passado, a admiração que o diamante despertava se devia ao fato de ser produto de milhões de anos de processos naturais. Mas, hoje, somos capazes de produzi-lo numa ínfima fração do tempo de que a natureza necessitaria. Devido a tanto, à transcendência do fator tempo nessa equação, o diamante natural perdeu boa parte do seu encanto. Não há mais como se gabar de possuir um baseado na aura numinosa conferida pelo deus Tempo. Mas o produto da engenharia genética é diferente. A vida humana não será desvalorizada, pois o instinto de sobrevivência a acompanhará eternamente, e a Moral se acomodará a ele, assim como os conceitos de existência e divindade.
Já houve época em que os homens viviam imersos em terror perpétuo, fruto de crenças difusas sobre sua origem e destino; a existência era algo absurdo. Tal conjunto de crenças recebia o nome de “Religião” e assolou o mundo por dezenas de séculos. A Religião se fundamentava em dogmas, um deles a “fé cega”, criando uma incompatibilidade com um mundo em evolução, em busca de respostas concretas para os questionamentos essenciais. Naquele tempo, Religião e Ciência estavam apartadas. Formavam uma bifurcação conflitante que ignorava seu tronco comum. Não se atentava à verdade de que as duas são complementares: a Religião tinha razão até o ponto em que afirmava que a origem do homem se devia a uma entidade inteligente: o homem foi criado. A razão da Ciência estava em questionar os moldes de “entidade inteligente” pregada pela Religião, além de procurar entender os meios usados para originar a vida. E o tempo passou... A evolução científica trouxe a possibilidade da criação de clones humanos, trouxe o dom de co-criação ao homem. Nesse estágio de capacidade criativa, a ideia de que a humanidade talvez também fosse fruto de uma raça cientificamente superior deixou de soar tão absurda. Em decorrência disso, a afirmação religiosa de que o homem fora criado por uma entidade inteligente passou a fazer sentido, e a questão crucial para a Ciência passou a ser “quem seria essa entidade ou raça cientificamente superior”. Iniciava a convergência entre Ciência e Religião e a derivação de novas práticas científicas mais integras.
A anos-luz de qualquer babel de conceitos, nossa época é de síntese. Houve mudança naquilo que a Religião pregava; ou melhor, na forma como pregava. Seus dogmas ruíram. O conceito “Todo Poderoso” foi transmutado. Outrora, ele dizia respeito não apenas à entidade que havia criado terra, céu e mar, mas também engendrado a raça humana. Mas num vasto universo, onde o conjunto da obra se perpetua pela obra numa escala de avanço científico, não nutrimos mais a ilusão de sermos intervenção direta da Entidade Suprema, de onde tudo emana, inclusive nossos próprios criadores diretos. Estes, muito embora possuidores de um nível de sofisticação científica superior na moldagem da argila sonora, ao ponto de nos aperfeiçoarem a partir de símios que vagavam pela Terra, também são obra Dele, do sempiterno, que não teve princípio nem há de ter fim e habita o inacessível a conceitos humanos. “Incognoscível” é um de seus nomes. O Deus supremo, todo poderoso, permanece como entidade incognoscível que, há éons inconcebíveis, fez concessão do poder co-criativo que Dele emanou, cobrando apenas os “royalties” de retidão moral taxados pelos mensageiros que eventualmente nos envia.
Quanto a nós, não somos mais simples reprodutores. Somos co-criadores! Co-criadores de nós mesmos através da inteligência, para além da mera reprodução biológica. Isso é evolução! Os meios eficientes para a clonagem humana já nos são banais. Sabemos, hoje, que nossa raça foi projetada com o intuito de povoar este planeta.
Agradecemos a nossos criadores que, em eras pretéritas, para além do limo dos oceanos e do pó dos desertos, empreenderam o investimento nesse canto esquecido da galáxia, e asseguramos que não os decepcionaremos como as raças dos projetos anteriores, que, temos notícias, foram expulsas do Jardim que habitavam por sua degenerescência moral.
Em pé, lado a lado, a dupla de
oficiais perscrutava o céu noturno sobre o acampamento no deserto. Num ponto
bem afastado da linha das baterias de obuses. De costas para o clarão dos
disparos intermitentes, vislumbravam a negra vastidão celeste, cravejada de
incontáveis pontos brilhantes.
Fora os meteoritos, procuravam distinguir
qualquer coisa que tivesse brilho e se movimentasse. Nas altas camadas da
atmosfera, estava em curso a batalha decisiva pelo controle da rede cibernética
de satélites e drones. Tornara-se hábito entre oficiais e soldados rastrear o
céu noturno em busca de pequenas explosões.
“Viu alguma coisa?”, perguntou o tenente de pelotão
blindado, Dmitrich.
“Ainda não”, respondeu Ivanovitch, tenente de infantaria.
“Veja!”, Dmitrich, aponta para o céu. “Viu?”
“Vi. Apagou.”
“Será que foi um X-37B?”
“Certamente. Estamos vencendo lá em cima.”
“Toda aquela parafernália lá em cima e nós aqui, na base do canhão”, observou Dmitrich. “Se estamos vencendo, por que não despejamos nossos mísseis da Exosfera aqui também? Nem que seja para errar o alvo como aconteceu com o inimigo no Mar Amarelo.”
“Na verdade, não foi erro do inimigo. Seus mísseis rumavam precisamente para Beijing. Mas o aliado conseguiu inutiliza-los antes que entrassem no espaço aéreo do continente, bem acima do Mar Amarelo”, diz Ivanovitch.
“Não sei como você consegue parar em pé! Está com febre, ainda?”, Dimitrich muda de assunto, falando sobre o estado de saúde do colega.
Ivanovitch meneou a cabeça em tom positivo:
“Com a tensão da proximidade da batalha não sinto tanto. O pior são as cólicas... Não sei quanto tempo vou durar aqui. Quero apenas ir lá e ser bem-sucedido.”
Os canhões retumbavam noite adentro. O clarão dos projéteis lançados iluminava os rostos dos artilheiros. De seus ouvidos escorriam fios vermelhos de sangue, tamanho o estrondo das baterias que cuspiam obuses para macerar as distantes defesas inimigas num prelúdio ao ataque da aurora.
Ao alvorecer, Dimitrich e Ivanovitch avançam com seus pelotões. Na ponta-de-lança fundiam-se companhias de infantaria e blindadas. Não há um exército inimigo explícito no horizonte, apenas a promessa de milícias guerrilheiras infiltradas em vilas e cidadezinhas, segundo o alto comando. A certa altura do caminho, uma ordem via rádio faz com que os pelotões desviem em direção a um vilarejo.
Trabalhando em pequenas plantações na periferia da vila, alguns homens e mulheres observam com estranheza uma nuvem de poeira incomum crescendo no horizonte. Os pelotões se aproximam e, a uns duzentos metros da periferia, param. O contorno de homens armados e tanques de guerra se define claramente para os habitantes. A perplexidade inicial dá lugar ao pavor, e as pessoas começam a correr para dentro da vila. A fuga atiça a sanha da artilharia que começa a disparar em direção a elas.
"Cessar fogo! Cessar fogo!”, grita Dmitrich, saindo da torre de um tanque.
Enquanto isso, o rádio do tanque se agita: “O que está acontecendo aí?”.
“Não encontramos resistência”, informa o tenente Dimitrich ao capitão do pelotão blindado em algum outro ponto do vasto deserto.
“Chegaram à vila? Ótimo, prossigam em frente! Tomem a vila!”, ordena o capitão pelo rádio.
Mal termina de falar com o capitão, Dimitrich ouve mais disparos de fuzil.
"Cessar fogo! Cessar fogo!”, grita enlouquecido e pula da ponte do tanque em cima de um soldado da infantaria.
“Recebemos ordens de chegar atirando”, diz o soldado.
“Minha mulher está grávida, farei qualquer coisa que me mandarem”, arremata o soldado.
“Cessar fogo!”
Cessam os disparos, mas, dessa vez, a ordem veio do líder da infantaria, Ivanovitch, que caminha até o tanque de Dimitrich.
O que está havendo aqui, tenente? Recebemos ordens para varrer a área. Por que não está disparando seus canhões?”
Munido de binóculo, o tenente Dmitrich dá uma boa olhada para além dos muros, enxergando apenas um esvoaçar colorido de barras de vestidos, serpenteando em disparada pelas ruelas para o interior da vila.
“Vamos mandar batedores. Não sabemos se há rebeldes na vila”, diz Dimitrich.
“Bem colocado, ‘não sabemos’, tenente”, diz Ivanovitch.
“Não vou sacrificar meus homens para ter certeza.”
“O que está acontecendo aí?”, o rádio chama novamente.
Dmitrich volta ao rádio expor seu ponto de vista ao capitão do pelotão blindado, que não o deixa concluir.
“Limpe a área, tenente!”
“Mas, senhor...”
“Repito, limpe a área! Não desobedeça, tenente!”
Enquanto Ivanovitch orienta seus soldados a reiniciarem os disparos contra tudo que respire ou faça sombra, Dmitrich, a contragosto, dá ordens para que os quatro tanques do pelotão se posicionem em arco e mirem nas casas. Os tiros de canhão começam. Os poderosos projéteis abrem claros entre as humildes moradias, levantando poeira e fumaça. Surgem incêndios e gritos por toda a parte. Os soldados a pé abatem qualquer coisa que saia da vila tentando escapar do inferno de chamas, ou se insinue em seu campo de visão, sejam mulheres, crianças ou mesmo animais. Em troca, recebem meia dúzia de disparos de revide.
Depois de meia hora de disparos intermitentes dos pelotões, o tenente Ivanovitch incita seus homens a entrarem na vila:
“Entrem com tudo!”
Os soldados enxameiam pelas ruelas tomadas de escombros. Por todo lado há destruição: pessoas agonizando em possas de sangue, sem parte dos membros, sufocadas no meio de escombros. Bem na entrada, encontram um velho ferido, recostado a uma parede, agarrado a um fuzil enferrujado. Tenta erguer a arma contra o primeiro soldado que vê entrando, mas é fuzilado no peito.
O cheiro de pele queimada é terrível, mas os soldados ensandecidos correm penetrando mais fundo na vila. Um garoto chorando no meio do caminho é atropelado. O soldado que vem atrás o arremessa para o lado com uma coronhada na cabeça, e o que vem em seguida lhe pisa o peito brutalmente, quebrando seu esterno. Uma porta é arrombada. Mulheres e meninas aparecem encolhidas a um canto, atrás de tulhas de grãos. Desesperada, uma grávida levanta para tentar escapar, mas recebe um tiro que explode seu abdômen. As meninas têm as roupas arrancadas num frenesi de violência. Um tanque transita pela rua principal do vilarejo, mirando nas poucas habitações que permaneceram de pé.
À sua frente, seguem Ivanovitch e seus quatro melhores assassinos, desfigurados pela insânia. O tenente dá instruções para executarem os que ficaram presos nos escombros. Guiados por choro, lamentações e gemidos de desespero, os soldados sobem pelos escombros a procura de bolsões que abriguem sobreviventes. Ao ouvirem qualquer murmúrio sob as botas, caso as frestas dos bolsões sejam estreitas demais para mirar os fuzis, enfiam granadas de fragmentação por elas.
Terminada a limpeza, espalham herbicida nas plantações e ateiam fogo a tudo que pegue.
“O que está acontecendo aí?!”
“Tomamos a vila, capitão.”
“Alguma baixa?”
“Sem baixas, senhor.”
“Parabéns, tenente! Vou indicar seu nome e o de Ivanovitch para a condecoração.”
Por algum tempo teve que adiar o pretendia fazer. Entretanto, tal atitude não condizia com sua natureza. Em outras ocasiões, sobretudo naquelas que envolvessem decisões urgentes sobre posições inimigas, o general Wei sempre optou pelo avanço contínuo, sem retiradas. Não fora por falta de tempo que deixara de escrever as últimas páginas de seu diário de guerra, pois o armistício já havia dispensado os estrategas dos campos de batalha, naquele que fora o último conflito de proporções mundiais. Embora tivesse muito a relatar, queria que a chave-de-ouro de seu registro pessoal fosse uma síntese formidável acerca do deslocamento do eixo geopolítico mundial, coroado com o triunfo do bloco que defendera. Mas, no momento, não havia ambiente adequado para tal. Seria preciso refúgio para executar seu intento. Algo que às cerimônias de comemoração e entrega de medalhas, bem como à atmosfera de histeria patriótica que grassava nas ruas era incompatível. Esperaria a hora certa. Tal síntese seria como uma florescência nascida da sedimentação de recordações que a cada dia lhe voltavam à mente sobre as preliminares, o desenrolar, e o desfecho da guerra. Dia-a-dia, ruminava o rumo dos acontecimentos das últimas décadas: a fragmentação da aparentemente invencível potência ocidental, alianças, batalhas, reveses, retiradas das tropas invasoras que há anos vinham cercando seu país e vizinhos.
Embora o inimigo representasse desafio hercúleo, nunca duvidara da vitória. Vez por outra, ainda degustava a sensação de otimismo que desde o início lhe acompanhara, resquício duma fogueira de inefável convicção acerca do bom sucesso, acendida em seu íntimo com a declaração de guerra oficial. Desde a convocação, Wei sentiu-se como que destinado a uma espécie de missão divina previamente estabelecida. Só precisava fazer sua parte na reconfiguração política do globo que estava em vias de acontecer. Após décadas de recolhimento havia chegado a vez de sua nação. Os ventos da prosperidade soprando a favor de seu país. O que parecia impossível no jogo de poder internacional aconteceu. O mundo havia mudado. O rumo inexorável da História riu das tentativas dos que tentaram barra-lo. Nem sequer puderam atrasá-lo. Foi fulminante.
Pouco tempo depois, numa silenciosa tarde de inverno, fez-se o ensejo. No jardim de inverno de sua propriedade, Wei jazia sentado atrás de maciça escrivaninha de madeira. Pela janela, contemplava o padrão monocromático do exterior: tudo muito branco pela neve acumulada. Nem mesmo o branco sujo do céu nublado assemelhava-se ao caos cromático do campo de batalha, e o sabor do puro malte que sorvia tinha a suavidade de um néctar divino. Sozinho, ali, à parte do mundo, ninguém lhe via, ele não via nada. Para lhe guiar, senão a luz duma luminária pousada sobre a mesa, juntamente com o velho diário. As últimas páginas permaneciam em branco, prontas a receberem tinta. Wei puxou a luminária mais para perto, abriu bem o livro... Em amplo floreio ensaiou a primeira palavra. Tomou um gole. Parou um instante com a caneta suspensa sobre a flor do papel, perscrutando o esboço duma síntese. Abstraiu um marco inicial, um intermediário e um final como arcabouço de preenchimento dos fatos. Pôs-se a escrever:
Anos antes da guerra, o país inimigo entrara em decadência. Após algumas décadas de prosperidade e soberania sobre praticamente todo o globo, mergulhou em profunda crise econômica e no caos social.
Assim ocorreu devido à perda paulatina do controle de que dispunha sua elite sobre o comércio mundial, e a perda do valor de sua moeda, outrora a moeda que regia as transações comerciais estratégicas da Terra. Entretanto, num ponto continuava hegemônico: em sua máquina de guerra. Décadas de investimentos massivos e desenvolvimento em tecnologias complexas o equiparam com um arsenal formidável, incluindo diversas frotas navais capazes de levar a destruição da noite para o dia a qualquer canto da Terra. Dada a crise econômica, urgiu a tomada de uma atitude, só lhe restando jogar com as cartas de que dispunha, o que se revelaria demasiadamente custoso para o mundo. Restaram à potência em crise os pobres Estados do globo com alguma fonte de riqueza mineral. Sob os pretextos mais absurdos, passou a abusar de seu poderio bélico, tomando territórios a bel-prazer. No início, fiou-se em um mínimo de razões para legitimar as ocupações. Mais tarde, porém, passou a agir descaradamente, ficando evidente seu intuito de pilhagem. Uma a uma, as nações mais frágeis foram absorvidas. Por via da lealdade forçada, passaram a gravitar num bloco aglutinado pela coerção, cujos recursos das regiões relevantes eram geridos militarmente a partir de fortalezas muradas. O resto, o que ficasse extramuros, não passava de bantustões e vítimas para queimar com a assistência zelosa das elites regionais caídas de joelhos: lacaios submissos que não hesitavam em assassinar compatriotas conforme a conveniência do ocupante.
Apenas duas nações poderiam barrar tal agenda expansionista. Uma delas éramos nós, pela tradição como potência militar e prosperidade econômica que nos colocava em vias de liderar o globo. A outra era nosso vizinho fronteiriço que, embora passasse por um período de re-estruturação econômica, ainda preservava bom estoque de armamentos dotados de enorme poder destrutivo, gênios científicos e uma numerosa população para sacrificar se fosse o caso. O fato de sermos nações vizinhas, tacitamente formando um maciço bloco regional, sendo a agressão a uma tomada como ameaça à outra, constituía um agravante para o inimigo potencial. No período anterior ao conflito, ainda mantínhamos importante comércio com o agressor. As visitas de seus secretários de estado eram frequentes, bem como oportunas, pois visavam obter a garantia de que continuaríamos comprando seus Títulos do Tesouro. Na verdade, éramos seu maior credor. Entretanto, havia uma diferença entre os modos como gerenciávamos nossos recursos. Enquanto ele se enredava cada vez mais no mundo abstrato da especulação financeira, despejando dinheiro num poço sem fundo, estávamos mais preocupados com o mundo concreto. Enquanto a infraestrutura dele envelhecia, investíamos pesado na nossa. Não nos importávamos em receber até mesmo grãos em troca dos títulos que tínhamos guardado. O que seria de um país sem alimentos? Mas, apesar dos negócios, em comum, nunca nos iludíramos a respeito dele. Permanecíamos atentos as suas táticas de desestabilização política de países inteiros por meio do suborno e financiamento de grupos compatriotas rivais caso detectasse tensões e as perspectivas de lucro fossem promissoras. Nunca havíamos entrado em combate direto com seus exércitos, mas permanecíamos atentos ao posicionamento de suas bases pelo mundo a fora, as quais ultrapassavam mil unidades. E quando chegou mais perto com uma de suas frotas, ocupando a porção austral do continente, constituída por estados mais frágeis, não ficamos surpresos. Tal movimento vinha num pacote de posicionamentos militares estratégicos na tentativa de se fortalecerem para nos fazer frente. Havia em curso um plano de nos cercar em longo prazo. O paradoxo para eles é que dependiam justamente de quem ameaçava sua hegemonia. Independente da supremacia militar, as coisas se mostrariam difíceis ao invasor, já no início. Apesar da disparidade bélica entre ele e os fracos países do sul, teve que lidar com uma tenaz resistência de guerrilheiros nativos determinados a expulsá-lo, fato que causou uma enxurrada de baixas em suas linhas. Às famílias dos jovens mutilados e aos aviões cargueiros abarrotados de sacos negros que retornavam diariamente a seus aeroportos militares, contendo os corpos catalogados nas baixas fatais, cada novo presidente seu respondia com mais investimentos maciços em defesa. Canalizavam preciosos recursos para o empreendimento de guerra num continente distante, enquanto a população local era contemplada com migalhas e cortes nos serviços públicos. Enquanto apenas o povo mais pobre padecesse pelo descaso de seus governantes ou servisse de carne para canhão, embalado no transe de grandiosidade patriótica, as coisas permaneceriam relativamente pacatas. Mas, em breve, a gente de certa posse sentir-se-ia espoliada, e o senso patriótico passaria a soar como engodo. Daí em diante o cenário político interno do invasor entraria em parafuso: passaria a experimentar em casa o que perpetrara pelo mundo ao longo de sua História.
No contexto de nossas relações econômicas, certa feita, seus federais nos ofereceram um acordo em segredo. A proposta nos concedia a opção para aplicar a desapropriação de bens dentro de seu território como garantia para que continuássemos lhes emprestando dinheiro. Isso significava que, na eventualidade de seu governo precisar honrar obrigações financeiras conosco, teríamos permissão para tomarmos fisicamente terras e prédios em seu território. Quando a casta abastada no comando dos estados se deu conta, boa parte de seus territórios já estava empenhada pelo governo federal. O tempo passou e, a certa altura, o inevitável aconteceu: tornaram-se incapazes de saudarem parte das dividas. Iniciaram as desapropriações, poder que o governo tem de tomar propriedade privada para uso público sem o consentimento do proprietário legal. Pela sua constituição, o governo só poderia desapropriar se provesse uma indenização, cujo valor ele próprio decidiria. Uma torrente de processos judiciais inundou os tribunais, movidos por proprietários que se sentiram mal indenizados. Entretanto, em todos os casos, as cortes mantiveram o valor original definido pela propriedade.
Em vários estados formaram-se grupos de cidadãos ressentidos em torno da perda e mau pagamento de suas propriedades. Na sequência das desapropriações, nos anos seguintes, recebemos o estado do Havaí inteiro para quitar parte substancial da dívida. Mas, embora ambos os lados procurassem manter as negociações em discreto, os termos reais da troca de mãos da ilha não passaram despercebidos. Foi mais um duro golpe no senso de segurança daquela nação. As lideranças regionais, sempre preocupadas, não podiam deixar de imaginarem quando chegaria a vez de seus estados. A perda de um Estado inteiro também afetou o brio patriótico da população. Foi o marco traumático da perda de fé no governo federal, até então símbolo da unidade em prol dos interesses da nação. Ficou claro ao povo que os federais não passavam de representantes de interesses de uma elite global que desprezava nacionalidades. Somando tudo ao fato de ser um povo armado, foi só uma questão de tempo para a eclosão do pandemônio.
No turbilhão de revolta crescente, tentando reviver os áureos tempos de soberania nacional, surgiram partidos políticos para arrebanhar a massa desiludida. Imantavam militantes nostálgicos dos tempos de paixão patriótica, pregando um discurso de “patriotismo racional”. Não mais o patriotismo cego do passado, mas um patriotismo justificável em termos reais de soberania nacional e integridade “wasp”. Prometiam trabalhar para recuperar a gerência do país perdida aos estrangeiros. Sobretudo no sul, composto por estados de tradição rebelde, os partidos dessa linha ideológica abrigavam alas ultrarradicais que treinavam milícias armadas em fazendas. Também havia partidos que defendiam a negociação conosco, expondo o fato da constituição multirracial da sociedade vir de longa data. A ala mais radical desses partidos estava alinhada com os federais, apoiando o uso da força em eventuais desapropriações de terra. Outros propunham a defesa de interesses regionais, independente dos negociadores sermos nós ou seus federais. A densa nuvem negra que pairava sobre aquela sociedade precipitar-se-ia certo dia, num episódio que marcaria o início de uma guerra civil.
Ficara acordado entre nossos governos que certa cidadezinha decadente do sul de seu território nos seria entregue como pagamento. Na época, ambos sentíamos a necessidade de expandirmos nossas áreas de depósito de materiais indesejáveis do ponto de vista ambiental, vindo a calhar tal localidade. Um megacomplexo seria construído como destino para todo tipo de refugo contaminado por metais pesados, vírus, bactérias e radioatividade, incluindo cadáveres de animais e humanos. Os termos da entrega da cidade previam que, depois de um ano sob nossa responsabilidade, o governo federal local também poderia usá-la com as mesmas finalidades. Sob a suave pressão de promessas de privilégios, o estado que a abrigava cedeu a cidade, negando-se, porém, a mobilizar forças locais em caso de necessidade de expulsões, o que ficaria a cargo dos federais. Uma data limite foi marcada para a cidade ser esvaziada, e, meses antes, iniciaram-se os trâmites de praxe para compensar os moradores. Todavia, umas seis ou sete famílias optaram por partir até o prazo determinado. Uma nova data foi fixada, mas, desta feita, com avisos ostensivos insinuando aos moradores que o uso de força era uma alternativa em caso de permanência. Nesse ínterim, uma numerosa força-tarefa sob o comando da Polícia Federal foi mobilizada e um plano de desocupação traçado. Faltando um dia para expirar o prazo, apenas mais uma dezena de famílias aceitara os termos de desapropriação.
Certa madrugada, os federais adentraram a cidade adormecida, seguidos por frotas de ônibus vazios. Os moradores seriam realocados em campos de concentração da Agência Federal de Administração de Crises (AFAC). Os agentes passavam de porta em porta com uma ordem de despejo a ser assinada pelo morador. Alguns, anciões, principalmente, cediam impotentes. Outros trancavam as portas apenas para serem derrubadas, sendo arrancados de casa aos gritos e lágrimas da família.
Havia um par de horas em que os federais haviam adentrado a cidade nos trabalhos de remoção, enfrentando o mesmo tipo de reação desesperada, quando o primeiro estampido irrompeu no ar. Caia o primeiro agente. Mais disparos seguiram-se à fuga dos federais pelas ruas. Enquanto alguns se escondiam atrás de troncos de árvores, esquivando-se da mira de francoatiradores alhures, os que ficavam expostos eram abatidos. Embora houvessem cogitado certa resistência, os federais subestimaram o grau de intensidade dela. Foi quando surgiu a necessidade da Guarda Nacional e de lotes de caixões da AFAC, parte para os agentes mortos, e uma parte ainda maior para os moradores que viriam a ser assassinados no decorrer da tomada da cidade. Até então, o alerta fora para a existência de francoatiradores. Mas, à medida que a Guarda Nacional avançava pelas ruas, ficou evidente a presença de um grupo bem organizado infiltrado no local. Munido de armas automáticas, praticava táticas de guerrilha, emboscando e recuando.
A repercussão foi imediata, consternando as populações vizinhas que tinham negócios e familiares na cidade atacada. Revivendo o pesadelo da destruição de suas cidades pelo implacável norte ─ desta feita a massacrar o povo em benéfico de estrangeiros ─, uniu-se o sul. Milícias voluntárias de toda região compareceram para apoiar a resistência. Em seguida, o movimento se estendeu às lideranças militares locais. Vários estados se rebelaram oficialmente contra o governo central, oficializando um movimento armado de guerra civil nomeado de “Segunda Guerra de Secessão”. O conflito interno da nação inimiga estender-se-ia por alguns anos. As tropas federais até que tentaram restituir à Federação os estados rebeldes, enquanto as desapropriações eram transferidas para a Costa Oeste sem maiores resistências.
Atolado em diversas frentes de batalha no exterior e numa infeliz disputa fratricida, o inimigo tornou-se um pilar de sal. Concomitante à guerra civil seguiram as desapropriações a passos largos na Costa Oeste. Os estados do sul se separaram da federação formando uma república independente. O resultado final foi a fragmentação da antiga potência hegemônica em repúblicas formadas pela união de estados sob influência de outros países ou continentes.
A República da Califórnia ficou sob nossa influência.
Aguardavam o início do julgamento. Perfilados, lado a lado, num patamar superior, jaziam os membros do Conselho divisando a área circular logo abaixo, em cujo centro ficava a velha cadeira à espera de um novo réu. Escoltado por dois guardas, entra o acusado no recinto, a cabeça previamente raspada para o exame. Os guardas atam seus pulsos à cadeira com espaldar para cabeça enquanto o frenologista é aguardado para o veredicto suplementar. Todo criminoso era julgado pelos guardiões do corpo de leis, o Conselho de Anciões. Dado o veredicto inicial, seguia-se um exame anatômico do crânio do réu para atestar em termos de características relacionadas às regiões cerebrais as causas de seu desajuste social. Ao lado da cadeira há uma pequena mesa com um envelope de papel contendo a acusação e o veredicto da etapa inicial do julgamento, o qual só será aberto após a conclusão do exame, evitando induzir o examinador. As portas principais do recinto se abrem. Um homem uniformizado entra e anuncia em tom solene:
“O senhor Ivan Ivanovitch Iejov”.
Entra o frenologista acompanhado de um auxiliar. Este toma conta das preliminares sedando o réu via intravenosa. Um silêncio abissal desce sobre o recinto, todos os presentes profundamente concentrados no exame. O frenólogo faz um gesto com a mão, e o auxiliar aciona um controle remoto que eleva a cadeira, deixando a cabeça pendida do réu desacordado bem na linha da visão de Ivanovitch. “Está iniciado o exame”, proclama Ivanovitch. Numa análise prévia, circula vagarosamente em torno da cadeira, visualizando demoradamente as proporções do crânio do réu. Por duas vezes se dirige brevemente ao auxiliar para indicar apontamentos que este registra numa planilha. Em seguida, se aproxima e inicia a segunda etapa, medindo com uma fita métrica distâncias e proporções do crânio. Por último, vem a etapa do tato. Com a ponta dos dedos percorre o couro cabeludo do acusado, procurando saliências e reentrâncias. À medida que segue com o exame, sugere novos apontamentos ao auxiliar.
“O exame está concluído”, anuncia Ivanovitch, de repente.
Em seguida, inicia o relato de suas conclusões ao Conselho:
“O exame inicial, de perfil, expôs claramente o caráter do réu. Observem os senhores a testa curtíssima deste indivíduo”, Ivanovich delineia com o indicador a parte frontal da cabeça do homem. “Reparem na base da testa, na linha das sobrancelhas, há uma saliência bem definida e protuberante de onde segue uma linha praticamente reta até o topo da cabeça. Agora, observem a queda abrupta desta linha, passando pela parte traseira do crânio diretamente ao pescoço, sem a mínima saliência de entremeio; sua nuca é praticamente achatada. Concluo que tais proporções, grosso modo, assemelham-se às de um triângulo retângulo. Baseado nisto, em relação à aguda protuberância na base da pequena testa, afirmo que o réu possui uma considerável hipertrofia num dos pontos relativos às faculdades intelectuais, no caso, naquele correspondente à individualidade que, juntamente à atrofia na porção intermediária entre a testa e o topo da cabeça, local da faculdade moral da benevolência, soma-se à nuca achatada, evidencia de atrofia afetiva. O conjunto de tais características, individualidade extrema e ausência de benevolência e afetividade, denunciam um indivíduo extremamente autocentrado.”
Enquanto faz uma pausa para as informações sedimentarem na assistência, Ivanovitch circula em torno da cadeira, mãos para trás, olhar atravessando o chão.
“Na segunda e terceira etapas”, reinicia o relato, “etapas do exame através do tato da superfície do crânio e da coleta de suas medidas, o que chama à atenção, imediatamente, é a relação entre largura e altura nas proporções do réu com sutis protuberâncias acima das orelhas que, inicialmente, passariam despercebidas, mas que um exame minucioso é capaz de revelar ao tato”. Segurando a ponta da orelha dobrada com uma das mãos, o examinador aponta com o dedo da outra a área exposta, observando ser a zona da periculosidade. Em seguida, Ivanovich ensaia algumas hipóteses sobre o tipo de delito do acusado:
“Devido à soma dos fatores evidenciados nesse exame, concluo tratar-se de um indivíduo frio e egoísta, débil, também, pois a única área do grupo das faculdades energéticas que se destaca é a da periculosidade. Certamente trata-se de alguém cujo elã gira em torno de conflitos, e, portanto, não tem o mínimo freio em perpetrar desarmonia em derredor. Alguém assim, certamente, sente-se desconfortável em ambientes civilizados. Se até esse momento não havia chegado a nós, foi em função de esforços terríveis para conter-se. Em última análise, mesmo que se disciplinasse, seria apenas uma questão de tempo para que chegasse a esta cadeira, pois mais cedo ou mais tarde sua agressividade viria à tona em algum rompante, defeito perigoso indissociável de sua natureza. O mínimo que posso afirmar, é tratar-se o delito em questão de agressividade motivada por interesses egoístas, seja agressão gratuita ou por frustração, furto ou latrocínio.” Ivanovitch recebe permissão do Conselho para abrir o envelope com a acusação, constatando tratar-se de caso de agressão. O homem havia matado a noiva por espancamento. Enquanto isso, o auxiliar aplica nova injeção para que o réu acorde antes do veredicto.
Um representante do Conselho proclama o veredicto:
Não ficando dúvidas acerca da natureza do réu, após duas sessões de julgamento, uma baseada na legislação deste Conselho, outra em provas científicas acerca de sua constituição física e psíquica, proclamamos que o mesmo será removido do corpo social.
Após deixar esse tribunal, até antes da meia-noite, o réu não estará mais entre nós. Será induzido ao sono profundo antes de ser cremado.
Observamos que a natureza violenta de suas ações representa agravante que lhe tira o direito de indução a qualquer sonho antes do sono profundo, devendo o condenado passar da vigília diretamente ao sono profundo como forma de punição.
Essas são nossas palavras.
“Muito alto! alto demais; não me acostumei ainda; é fácil subir à altura do topo de um prédio, para isso não falta ímpeto; pernas bem juntas, braços colados ao corpo, e, como um míssil, arremeto de cabeça na vertical; mas o problema é permanecer lá, suspenso, olhando a distância incomum que separa o corpo do chão; o medo é real, e também abstém de alçar voos mais altos; e as pessoas lá embaixo, paradas, apontando; não que em baixa altitude não fiquem observando, mas é mais confortável a sete palmos do chão; fico tão leve, como se estivesse mergulhado n’água, braços esticados, mãos espalmadas, os impulsiono para trás e me cuspo à frente; vá lavar as mãos! as dançarinas devem estar ensaiando... vou até lá, a porta fica aberta pra rua... tem um cara tocando flauta, o conheço, não sabia que fazia isso... deixa pra lá; aquele cara em pé no meio da praça fumando charuto... que dia é hoje? em plena terça com aquele ar de satisfação, parado, como se a existência fosse uma festa; parece alguém que conheço, mas num outro tempo ou num universo paralelo; você saiu do banheiro, vá lavar as mãos! irritante, sempre me observando, e a pele de meus dedos enrugando; alto demais, agora, mais alto que aquela palmeira, o ar arrefece de repente, os dedos me apontando... só um sonho, um sonho; nada mais seguro que este colchão onde estou deitado, nada mais limpo, esterilizado, enfadonho... só torna mais aguda essa sensação de impotência, de nada poder contra o mundo da decomposição; longe daqui vermes chafurdam na podridão, fungos entranham-se em troncos podres, e rios subterrâneos de dejetos seguem seus cursos alheios a ignomínia e ao desprezo humanos, sem se preocuparem em reivindicar à nós uma parte da natureza que julgamos ser nossa e para nós; o que posso fazer além de chorar? essa latrina vai ficar muito rasa! cave mais fundo! depois tampe o buraco para não atrair moscas, já temos moscas demais no acampamento; moscas, milhares delas, enxames de insetos ávidos de refugo humano, da carne podre, carne para canhão; sim senhor, capitão! que fim melhor poderia ter um garoto infeliz, apenas mais um numa geração de garotos infelizes num país decadente... não se contentam com a carne podre, querem nossa ração também (podre, também, é verdade); milhares de moscas dançando com as patas imundas na ração, trazendo de volta todo excremento de que julgamos estar livres; não se contentam com a ração, também querem nosso sangue no café da manhã... não bastasse o inimigo; é verdade, a disenteria me tirou de combate, mas saímos vitoriosos; o sacrifício de nossa geração valeu à pena, removemos os últimos obstáculos à Nova Ordem; será um século sob nossa batuta... Não, não pode ser! Nem o campo de batalha e sua podridão, nem os micro-organismos puderam me levar, como é que os levam agora, daqui, da segurança dessa redoma! se tivesse uma arma...”
Do dia para a
noite houve outra mutação que investiu fatalmente contra o grupo sanguíneo B negativo,
causando várias mortes, inclusive a de Eva e Márcio. A família de Ivan foi
cremada no Centro de Saúde, dissolvida, talvez, no mesmo incinerador onde os
corpos dos condenados que passaram por seu exame foram reduzidos a cinzas.
Naquele momento, parado ali, em frente ao incinerador, com o suor a lhe
escorrer da testa, disfarçando duas ou três lágrimas de um choro que retinha
com esforço para não irromper convulso, finalmente compreendeu o poder
purificador do fogo para além da abstração da letra fria das sentenças de
execução proferidas nas salas climatizadas dos tribunais.
A cinzas também se reduziu seu ânimo, mas sem purificação, sem catarse... Nenhuma
forma de higienização jamais poderia dar cabo da nódoa na alma de Ivan. Tornou-se
outro, seu comportamento evidenciando a mudança. Na rotina de trabalho, quando
não estava em estado catatônico, travado numa inércia absurda, estava envolvido
em atritos. Alheio a qualquer senso de conveniência, começou a envolver-se em
questiúnculas com outros agentes sobre o sistema de trabalho. Questionava
abertamente os colegas a respeito daquilo que julgava contraditório entre as
exigências de higienização e alguns procedimentos envolvendo internos,
redarguindo às advertências dos superiores. Mas, dentre todos os problemas de
que foi acometido depois de perder a família, o mais pungente dizia respeito à
eclosão de seu passado de guerra sob a forma de trauma psicológico. Fantasmas
em forma de imagens que outrora lhe eram indiferentes ou não figuravam em suas
memórias, começaram a lhe assaltar. Via e ouvia de tudo, desde labaredas
gigantes em forma de faces demoníacas se refestelando com o cheiro da pólvora
queimada do campo de batalha, a coisas mais terríveis que lhe maceravam deveras
o coração, fazendo-o sentir-se como um verme miserável. Entre elas havia o
choro de bebês. Um deles, em especial, lhe perseguia o dia inteiro, e, nas
poucas horas de sono fragmentado que conseguia conciliar durante a madrugada,
sonhava com ele, constatando desesperado em prantos ser Márcio em chamas quando
bebê.
Seu
estado mental tornou-se óbvio via monitoramento neural, de modo que passou por
alguns aconselhamentos e advertências. Por fim, foi considerado inapto para
qualquer função e afastado do trabalho.
Entre o
labirinto de caminhos que vazavam a sólida massa do prédio, havia um largo
corredor no topo, diverso dos demais pela gravidade e suntuosidade. Convenientemente
posicionado num dos três últimos andares da Sede Governamental reservados à
diretoria, ficava no patamar intermediário entre o primeiro dos andares e a
cobertura. Diferente das outras dependências da S.G., seu aparato tecnológico
de acesso restrito integrava-se de forma sutil ao ambiente na forma de sensores
de massa corpórea. O estilo da decoração causava a quem descesse do elevador a
impressão de que estivesse regressando alguns séculos no tempo. O piso de raro
tabuão escuro, sólido como pedra, perfeitamente assentado, era ladeado por
paredes também de madeira, um pouco mais clara, sem deixar de ser nobre, também.
O brilho que refletiam evidenciava o tratamento a que foram submetidas a fim de
durarem ad eternum. Em determinados pontos das paredes jaziam pinturas, obras
de arte à altura do raro material de onde pendiam. Seguindo pelo corredor,
chegava-se a uma ampla sala muito iluminada pela luz natural que jorrava
através dos altos janelões encaixados com a permissão do enorme pé-direito.
Atapetada de persa, tinha as paredes de mogno decoradas com enormes painéis
representando batalhas, entre elas a de Poitiers e Austerlitz. Esta última,
sempre motivo de comentários e polêmica para alguns visitantes mais
nacionalistas com pretensões historiadoras.
Num
extremo da sala, perto de uma lareira ladeada por generoso estoque de achas
aromáticas, jazia uma pesada escrivaninha, sólida como monólito. Assentados em
seus extremos, frente a frente, dois homens conversavam. Um deles, o diretor da
S.G., ostentava ombros cravejados de estrelas. O outro, um executivo do ramo de
laboratórios, envergava excelente terno. Visualizavam Austerlitz.
“Só
você mesmo, Wei”, disse o executivo em tom resignado ao diretor.
“Fiz
questão desse painel.”
“Creio
que alguns não concordaram de todo.”
“Certamente
não, e não me interessa em que parte do todo não concordaram.”
“Mas,
e nós? Não se esqueça de que você está em nosso país”, advertiu o executivo.
“Não
se trata de ‘nós’, ‘eles’ ou ‘vocês’. Trata-se do teatro da guerra,
independente dos atores. Se foram vocês, russos, vítimas de má sorte naquele
episódio, isso é secundário. A mim importa ter sido um tempo em que havia
honradez no ato da guerra”, explicou Wei.
“Honra?
Como se os franceses fossem bondosos. Honrado era o cossaco que enfiasse a
baioneta em algum francês adormecido”, disse o executivo.
“Encare
do próprio jeito. Mas, seja como for, era um tipo de confronto franco, homem a
homem. Hoje as máquinas fazem todo o serviço. Meu ofício tornou-se insosso.”
Os
dois levantam. Muito devagar caminharam até um janelão. A partir das vidraças,
vislumbrava-se a vastidão azul manchada por uma penugem de nuvem que vagava
solitária ao longe. O sol pleno permitia divisar um horizonte longínquo, há
quilômetros e quilômetros além da ilha.
“Creio
que esteja ciente do motivo de sua presença aqui”, observa o diretor, abrindo
um baldinho de gelo para servir-se de uísque.
O
executivo acende um charuto e pergunta:
“Algum
pedido especial fora as drogas e medicamentos habituais?”
“Resolvi
chamá-lo pessoalmente para que entendesse a gravidade da situação. Vê toda
aquela placidez azul?”, com um copo na mão, Wei aponta o céu com o queixo. “Em
breve ela vai se transfigurar num pesadelo cinzento. Uma nuvem incomum se
encaminha para cá. Poderá estar sobre nossas cabeças em poucos dias. Há duas
horas fui informado de que um reator nuclear explodiu mil quilômetros a leste
daqui, certamente por obra de resquícios do armamento inimigo no Supremo
Terreno Elevado. A nuvem está se alastrando depressa. Nossos meteorologistas
advertiram da possibilidade dela se precipitar sob a forma de chuva radioativa
em toda a região. Temos que descartar esse risco.
“Mais
iodeto de prata...”, concluiu o executivo.
“Será
necessário uma quantidade extra, desta vez. Aviões-Spray já estão em prontidão
para serem carregados. Espargirão o iodeto na nuvem para estimular a
precipitação do conteúdo radioativo bem longe daqui. Quando for embora acione
imediatamente o transporte do produto para a base aérea sem alarde”, ordenou
Wei.
“Em
que região cairá a chuva?”, perguntou o executivo.
“Em
algum local do interior. Tem parentes no interior?”
A
dupla circula lentamente pelo salão.
“Como
estão?”, pergunta o executivo quando chegam à beira de uma escada no fundo da
sala.
“Cuido
bem delas.”
“E
elas correspondem?”
“Tenho
que admitir: são ótimas.”
Os
dois sobem a escada, até outra sala no andar superior. Muito mais modesta em
dimensões, não deixa de ter atributos incomuns. Menos iluminada, difere,
sobretudo, na decoração minimalista, enxuta e monocromática. Mergulhada numa
tênue luz avermelhada, evoca uma atmosfera de sonho. A presença dos dois é
notada, e uma fileira de belos rostos sorridentes torce o pescoço na direção
deles. Sobre uma mesa estendem-se lado a lado três cabeças de mulher,
demonstrando imensa empolgação pela presença de Wei. Sorriem mostrando uma
dentição perfeita, diferindo entre si pelas feições e pela cor dos cabelos,
negro, ruivo e loiro.
O
general se aproxima da mesa, afaga os cabelos da ruiva, curvando-se para
beijar-lhe o rosto. Diante disso, a cabeça de mulher reage assumindo feições de
extremo prazer.
“Sempre
simpáticas e solícitas”, observa o executivo.
“Temos
novidades”, diz Wei com ar de satisfação.
Ambos
se dirigem a uma sala contígua.
“Esta
é a última.”
“Incrível,
é linda!”, admira-se o executivo. “Só a pélvis já é um grande feito!”, observa
fitando com avidez uma criatura do sexo feminino formada apenas de pélvis,
pescoço e cabeça unidos com perfeição. “Que pele perfeita!”
“Ao
invés de refugá-la optei por tentar aperfeiçoá-la dentro de suas próprias
características físicas. É o resultado bem-sucedido de experiências genéticas malsucedidas.”
“Parabéns.
Você transcendeu bem e mal nestas questões.”
“A
composição do sangue é balanceada com os nutrientes certos. Também se instalou uma
bomba mais compacta para distribuí-los. Os pelos foram suprimidos. Só cabelos
crescem.”
“Fala?”
“Sim,
mas está em estado silencioso.”
“Emoções?...”
“Sim,
de acordo com um programa. Programas específicos de personalidade estão em
desenvolvimento. Em breve elas estarão no mercado, juntamente com os programas
conforme a preferência do comprador. Você poderá ter a mulher que desejar para
lhe satisfazer. Grosso modo, conversar com uma intelectual numa hora, ou com
uma medíocre na outra, ou simplesmente mantê-la muda. As possibilidades são infinitas.
Vai depender do número de programas que possuir.”
Esses insetos... Apenas
insetos. Ficam pra lá e pra cá carregando pedaços de folhas. Pra quê? Para que
servem? Existir ou não, qual a diferença se não têm consciência de si próprios
e do mundo em torno? A existência não requer consciência. Num momento, vivos,
no minuto seguinte, esmagados... Que sentido tem a vida se se perde a
consciência e se deixa de existir? Qual o sentido da vigília se quando se
adormece profundamente não se tem consciência de nada? Qual o laço entre consciência
e inconsciência, entre existência e não existência? Que valor tem a existência
sem referências perpétuas acerca dela?... É, realmente, só existe o estado de
sonho. A morte é sono, e a vida, nos momentos de vigília não passa de um sonho,
também. Somos como formigas. A única diferença é que tentamos dar sentido a
vida, subjetivamente, ou objetivamente, mas a vida pela vida, a existência pela
existência não tem sentido, só há desilusão. Existir e não existir dá no mesmo.
Agachado junto a um
formigueiro na entrada da fazenda, Ivan avaliava sua existência até aquele
momento. De uma hora para outra começou a perambular pela província. Dormia até
tarde, levantava e saía de casa passando o dia inteiro fora. Começou a
percorrer as áreas que anteriormente evitava, aquelas suspeitas fora dos limites
da cidade onde pairava a pecha de subversão. Sabia que a trilha levaria a uma
comunidade de Anônimos e seguiu caminho por ela devagar, como se estivesse
caminhando num parque. Alguns cães apareceram, ladrando fanfarrões, mas
inofensivos, e a um estalar de dedos já estavam abanando os rabos, cativos. Uma
dupla de rapazes passou por ele indiferente, como se estivesse invisível. Viu
uma mulher segurando um balde atravessar alguns metros à frente para
desaparecer no mato da beira da estrada. Seguiu adiante: um chalé de madeira
caindo aos pedaços, uma pilha de lenha, mais cães. Cães de todo tipo (todos
vira-latas), sarnentos, filhotes, guenzos, rengos, de cara branca, pelos longos
e curtos. Espaço não faltava para tantos animais. Parou um instante, olhou em
redor protegendo a visão do sol com a mão espalmada em cima dos olhos, e
avistou numa colina alguns chapéus de palha agachados numa horta...
Embora chamadas de
“fazendas”, a comunidade se assemelhava mais a um sítio. Não havia nenhuma
espécie de criação de animais para abate, apenas hortas. Existiam apenas alguns
galinheiros espalhados, pois embora todos optassem por não comer carne de
espécie ovos eram permitidos.
Aos poucos Ivan foi se
integrando no dia a dia da comunidade. Logo que chegou, ninguém lhe perguntou
nada ou veio lhe cobrar apresentações. Era uma manhã quente. Com sede e fome, ao
primeiro que encontrou, um homem baixo e atarracado com uma bandana na cabeça,
perguntou onde poderia conseguir água e comida. Estava justamente em frente a
um galpão que servia de refeitório. O homem gritou para uma janela em cima do
galpão se a comida já estava pronta. “Acho que vai demorar”, respondeu e foi
embora.
Ivan deu a volta no
refeitório. A parede da parte de trás, toda envidraçada, tinha uma porta. Em
frente a ela, uma escada de três degraus dava para um patamar inferior coberto
de lajes, onde duas mulheres de vestidos estavam conversando, sentadas num muro
baixo. Uma delas, de vestido verde, arrancava ervas daninhas da beirada do
muro. Na verdade, toda a superfície de lajes estava tomada pelo mato. Quando as
viu, Ivan chegou próximo.
“Olá”, disse
esperando receber boas vindas.
A de vestido verde
torceu o pescoço na direção dele.
“Olá”, foi tudo que
disse.
“Posso ajudá-las?”
“Pode.”
Foi ao muro do outro
lado, se agachou e começou a arrancar algumas ervas. Atrás de si, ouvia as
mulheres conversando baixo algo que não entendia. Vez por outra, a de vestido
verde agarrava displicentemente um caule suculento e o puxava. Logo as duas se
levantaram e saíram sem dizer palavra. Subiram as escadas e desapareceram atrás
do galpão.
No final da manhã, a
testa pingando de suor, restava apenas um par de ervas que Ivan não arrancara
por compaixão. A de vestido verde apareceu nas escadas segurando uma pá de
corte:
“Se você quiser pode
raspar o limo das lajes.”
“Como é o seu nome?”,
perguntou a ela.
“Irínia.”
...