Discurso do diretor da Sede Governamental
A vida clama pela vida,
pela manutenção e reprodução de si. O instinto de sobrevivência é a força
motriz do universo.
Assim iniciou a redação do
discurso que proferia uma vez por mês em rede, ocasião solene em que todos
paravam o que estivessem fazendo para ouvir o pronunciamento, fosse no
trabalho, nas escolas ou na rua.
Avaliando o que escrevera, o
diretor da Sede Governamental ficou satisfeito com a forma como iniciara. Tinha
em mente que um bom discurso deveria ser abrangente. Ninguém de intelecto mediano,
muito menos um governante poderia ignorar a relação entre política, ciência e
espiritualidade. Tudo estava fundido. Continuou a escrever:
No passado, a admiração
que o diamante despertava se devia ao fato de ser produto de milhões de anos de
processos naturais. Mas, hoje, somos capazes de produzi-lo numa ínfima fração
do tempo de que a natureza necessitaria. Devido a tanto, à transcendência do
fator tempo nessa equação, o diamante natural perdeu boa parte do seu encanto. Não
há mais como se gabar de possuir um baseado na aura numinosa conferida pelo
deus Tempo. Mas o produto da engenharia genética é
diferente. A vida humana não será desvalorizada, pois o instinto de
sobrevivência a acompanhará eternamente, e a Moral se acomodará a ele, assim
como os conceitos de existência e divindade.
Já houve época em que
os homens viviam imersos em terror perpétuo, fruto de crenças difusas sobre sua
origem e destino; a existência era algo absurdo. Tal conjunto de crenças
recebia o nome de “Religião” e assolou o mundo por dezenas de séculos. A
Religião se fundamentava em dogmas, um deles a “fé-cega”, criando uma
incompatibilidade com um mundo em evolução, em busca de respostas concretas
para os questionamentos essenciais. Naquele tempo, Religião e Ciência estavam
apartadas. Formavam uma bifurcação conflitante que ignorava seu tronco comum.
Não se atentava à verdade de que as duas são complementares: a Religião tinha
razão até o ponto em que afirmava que a origem do homem se devia a uma entidade
inteligente: o homem foi criado. A razão da Ciência estava em questionar os
moldes de “entidade inteligente” pregada pela Religião, além de procurar
entender os meios usados para originar a vida. E o tempo passou... A evolução
científica trouxe a possibilidade da criação de clones humanos, trouxe o dom de
co-criação ao homem. Nesse estágio de capacidade criativa, a ideia de que a
humanidade talvez também fosse fruto de uma raça cientificamente superior
deixou de soar tão absurda. Em decorrência disso, a afirmação religiosa de que
o homem fora criado por uma entidade inteligente passou a fazer sentido, e a
questão crucial para a Ciência passou a ser “quem seria essa entidade ou raça
cientificamente superior”. Iniciava a convergência entre Ciência e Religião e a
derivação de novas práticas científicas mais integras.
A anos-luz de qualquer
babel de conceitos, nossa época é de síntese. Houve mudança naquilo que a
Religião pregava; ou melhor, na forma como pregava. Seus dogmas ruíram. O conceito
“Todo Poderoso” foi transmutado. Outrora, ele dizia respeito não apenas à
entidade que havia criado terra, céu e mar, mas também engendrado a raça humana.
Mas num vasto universo, onde o conjunto da obra se perpetua pela obra numa
escala de avanço científico, não nutrimos mais a ilusão de sermos intervenção
direta da Entidade Suprema, de onde tudo emana, inclusive nossos próprios criadores
diretos. Estes, muito embora possuidores de um nível de sofisticação científica
superior na moldagem da argila sonora, ao ponto de nos aperfeiçoarem a partir
de símios que vagavam pela Terra, também são obra Dele, do sempiterno, que não teve princípio nem há de ter fim e habita o inacessível
a conceitos humanos. “Incognoscível” é um de seus nomes. O Deus supremo, todo poderoso, permanece como
entidade incognoscível que, há éons inconcebíveis, fez concessão do poder
co-criativo que Dele emanou, cobrando apenas os “royalties” de retidão moral
taxados pelos mensageiros que eventualmente nos envia.
Quanto a nós, não somos
mais simples reprodutores. Somos co-criadores!
Co-criadores de nós mesmos através da inteligência, para além da mera
reprodução biológica. Isso é evolução! Os meios eficientes para a clonagem
humana já nos são banais. Sabemos, hoje, que nossa raça foi projetada com o
intuito de povoar este planeta.
Agradecemos a nossos criadores
que, em eras pretéritas, para além do limo dos oceanos e do pó dos desertos,
empreenderam o investimento nesse canto esquecido da galáxia, e asseguramos que
não os decepcionaremos como as raças dos projetos anteriores, que, temos
notícias, foram expulsas do Jardim que habitavam por sua degenerescência moral.
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