sábado, 11 de junho de 2011


Reencontro



Mal o sinal havia batido para o início da tarde. Passado o alarido que antecede a entrada nas salas de aula, uma menina vem correndo da rua e atravessa o corredor que conduz à diretoria da escola. Convidada a ingressar na sala da direção, entra cabisbaixa e explode em lágrimas. Senta-se com a diretora, mas seu choro é tão intenso que não consegue falar. Na sala contígua, através do vidro que separa a secretaria da direção, o secretário testemunha tudo. Vai aos achados e perdidos. Encontra uma dessas bonecas abandonadas no pátio das escolas para entregar à menina. Só quando ela a pega no colo, o secretário percebe como as pequenas roupas que vestem o brinquedo estão sujas, assim como as da própria criança, de sete ou oito anos, que carece de melhores cuidados: está descalça, com um rasgo no dedão do pé e arranhões vermelho-vivo espalhados pela pele escura. Mais confortável, abraçada à boneca, e ao lado do doce sorriso compassivo da diretora, abranda o choro. Entre soluços revela que veio todo o caminho de casa à escola sozinha, com medo porque um bandido muito perigoso havia sido solto.
Pela manhã, antes de ir ao trabalho, a mãe de Aninha a deixou na casa de dona Maria, uma mulher que cuidava de crianças na vizinhança. Com outros dez, meninos e meninas, Aninha ficaria sob os cuidados de tia Maria até o meio dia quando almoçaria e sairia para a escola, ali perto. A manhã transcorria despreocupada, quando, a certa altura, no meio de uma brincadeira, um garoto contou à Aninha que o Nego Santos tinha fugido da prisão, e que ele andava com um saco para pegar crianças na rua. Na verdade, o jornal do dia saíra estampado com a notícia da soltura de um assassino perigoso, vulgo “Nego Santos”.
Depois do que ouvira do garoto, Aninha perdeu o sossego. À ideia de ter de ir sozinha à escola com o Nego Santos à solta foi colhida num turbilhão de angústia, estava condenada a ser apanhada na rua. Passou o resto da manhã com os dentes cerrados, engolindo em seco para disfarçar o choro. Apenas uma coleguinha percebeu os olhos carregados de Aninha quando foi convidá-la para pular corda. Perguntou por que ela estava chorando. A resposta foi um “nada”, quase incompleto, proferido com dificuldade. De resto, foi tão eficiente que ninguém mais percebeu seu transtorno, nem quando passou o resto da manhã isolada das brincadeiras, nem quando, à mesa do almoço, tia Maria, esbaforida, servia a criançada esfomeada. Diferente de todos, Aninha engoliu apenas uma colher de polenta com muito esforço.
Lá pelo meio-dia ouviu o grito: “Aninha, está na hora de você se aprontar para sair!”. O coração da menina disparou. Chegou a pensar em pedir para ficar sem ir à escola, esperando até que a mãe chegasse do trabalho à noitinha, mas não conseguia articular frase. Não havia a quem recorrer. Lembrou do pai: “gostaria que ele estivesse aqui”. A mãe se mudara sozinha com ela há algum tempo para as imediações da escola, após a separação do marido. Ainda assim, Aninha guardava nitidamente as imagens dos anos que passara com o pai: as feições, o modo divertido como ele a tirava do chão e a erguia bem alto com os braços esticados antes de pegá-la no colo. Às vezes, quando a saudade era forte, perguntava à mãe sobre ele. “Mudou-se para outro país”, era sempre a resposta. Se a língua estava travada, ainda tinha as pernas. Antes da tia gritar, Aninha já havia bolado um plano simples para não ser pega pelo bandido na rua: correria bem depressa para chegar logo à escola. 
Saiu porta afora que nem doida até o portão. “Aninha, espere!”, a tia gritou da casa, havia reparado em algo estranho na menina. Já no portão, ao ouvir o chamado, Aninha teve um momento de alívio. Deu meia volta e esperou chegar dentro da casa para começar a chorar. Quando ia voltando, a tia enfiou o busto pela janela da casa de madeira velha: “Tome, você esqueceu sua mochila”. Num pulo, a menina agarrou a mochila e seguiu com o planejado.
Correndo pela vida, a mochilinha cor de rosa pulando nas costas, a pequena menina ia saltando pelas calçadas. Mal começou a correr, já estava ofegante, quase sufocando, pois o medo encurtava sua respiração. Além do mais, as calçadas eram puro obstáculo. Ia saltando por cima de buracos e lajes levantadas pelas raízes das árvores. De chinelos de dedo, não demorou a trupicar numa alta rampa de concreto, dessas rampas de garagem que invadem as calçadas. Mas nem sentiu a dor do corte no dedão, apenas que o chinelo ficou escorregadio com o sangue que escorria da ferida, dificultando a corrida. Quando ele não parava mais no pé, agachou-se por um instante para enxugá-lo com uma folha seca de árvore. Mal havia se abaixado, reparou que alguém vinha pela calçada, logo a frente. Não pode ver-lhe o rosto, as copas baixas das árvores só permitiam ver da barriga pra baixo, mas viu pelas calças e pelos sapatos que se tratava de um homem. Na mão, segurava algo parecido com um saco de pano. Pega o par de chinelos pelas alças e salta para a rua. O asfalto do meio-dia está quente, queimando a sola dos pés, "se eu correr mais rápido ele esfria", pensa enquanto corre com todas as forças de suas pernas pelo resto do caminho até a escola.
Enquanto a diretora faz um curativo no dedão de Aninha, pede ao secretário que contacte os responsáveis para virem buscá-la, pois, embora o pior houvesse passado, permanece sentida. Fita o vazio ainda sob efeito de horríveis fantasmas, contraindo o rosto sob ânsias de choro eventuais.
Tempo depois, enquanto aguarda magoada dentro da escola, Aninha vê alguém entrando pela porta da frente:
“Papai!”, grita de felicidade.
Vai correndo e pula no colo do homem. A partir daí toda nebulosidade se dissipa e o rosto da menina se ilumina sorridente.
“Ei, senhor!”, o secretário chama o pai. “O senhor precisa assinar o caderno de saída para levar ela embora”.
O homem pega a caneta. Com uma letra crispada vai assinando: “Éverton dos Santos”. A menina em seu colo, dando risadinhas de satisfação.



S.E.



Nenhum comentário: