terça-feira, 18 de fevereiro de 2020




Garota Sans Souci


Todas as bicicletas do Mercure foram alugadas naquela manhã. Havíamos reparado em uma loja que alugava bikes e fomos até lá. Saímos com duas.

Na noite anterior, sentado em frente à grande janela do quarto, eu contemplava o lento anoitecer das altas latitudes, enquanto planejávamos ir ao parque Sanssouci na manhã seguinte. Recém chegados à cidade, tentávamos descobrir a direção a seguir. Eu avistava algo se erguendo na colina que delimitava meu horizonte. Embora muito pequeno, sua silhueta sugeria a de um moinho de vento. Um vórtice de escuridão castanho sujo no rastro do núcleo vermelho-alaranjado de um resto de sol longínquo compunha aquele quadro vivo com o Sanssouci.

Flanávamos sobre duas rodas pelas estradas de terra do parque quando topamos com três gigantes a guardar os vértices de uma encruzilhada. Troncos retos, ramos vigorosos e copas frondosas, aqueles plátanos se assemelhavam a trigêmeos. Senti como se nunca soubera o que fosse uma árvore até então. A condição de meras árvores não cabia a eles. Pela escala e integridade, aqueles seres estavam na categoria da arte monumental. Em frente ao Palácio de Sanssouci existe um espelho d'água circular rodeado por esculturas alvas. A partir dele irradiam longos caminhos retilíneos, como as torres góticas subindo ao céu, as vastas planícies de Baden-Württenberg até o horizonte, o triunfo da Música como possibilidade inesgotável de expansão criativa a coroar a alma ocidental, o ideal faustiano de transcendência espacial.

Chegada a hora do almoço, descobrimos um restaurante em um canto do parque. Olhávamos o cardápio, veio a garçonete. Nada baratos os pratos. Estávamos demorando a nos decidir. Depois disso, os garçons desistiram de nós e só atendiam as mesas de fora. Desistimos de almoçar.

Tomamos a direção do hotel. Encontramos a Luisenplatz por casualidade no caminho. Entramos pelo portão a pedido de minha companheira e seguimos pela rua, empurrando as bikes. Muitas pessoas circulando e apreciando o movimento, em pé no meio da rua, ou em mesas nas calçadas... Todos muito relaxados e à vontade. Havia um leve clima de euforia no ar. Fui contagiado instantaneamente. Seguindo pela rua, dobrando uma esquina, havia algumas mesas na calçada, protegidas por um grande toldo. Sugeri a minha companheira comermos algo. Não morria de fome. Era mais uma teimosia de ter sucesso em restaurantes alemães. A ideia de que havíamos pulado uma refeição também ajudou. Largamos as bicicletas e escolhemos uma mesa na calçada. Ninguém vinha nos atender. Não que não houvesse ninguém para tanto, ou não fossemos vistos. A quatro passos da mesa, escorada na porta com as mãos para trás, estava a garçonete. Com um suave meio sorriso, olhar perdido na direção das mesas, sua atenção era sequestrada pelo falar ininterrupto de um rapaz colado ao seu ouvido. Boné para trás, a atitude dele sabia àquela arrogância juvenil característica. Quem também havia percebido nossa chegada era uma senhora dentro do restaurante. Pelo grande vidro na parede, pude observar seu desespero com a cena de novela mexicana e personagens germânicos na porta do estabelecimento. Mas nada abalava a garçonete: jazia imóvel como as estátuas do Sanssouci. Não lembro de vê-la mudar de posição ou mesmo cambiar a expressão facial desde que chegamos. De costas para a cena, minha companheira ignorava todo o drama.

Naquela altura já havíamos escolhido o que comer. A garota resolveu nos atender. Não perdi tempo e sai apontando o que queria no cardápio. Perguntei à minha companheira o que iria pedir, e recebi um "nada", seguido de mais dois ou três "nadas" para reforçar o tom irritado da resposta. Pego de surpresa, saí pela tangente com um pedido de desculpas à garçonete antes de levantarmos da mesa.

Atravessamos a rua e paramos na primeira esquina. Não adiantou narrar todo o drama que observei no restaurante. Minha companheira ficou mais brava ainda. Segundo entendi, a razão de não tê-la deixado pedir primeiro foi ter me compadecido demasiado com a situação da garçonete, pobre moça assediada... Mais algumas colocações suas sobre garotas alemãs mais jovens e coisas dos gênero, descobri que, diferente de mim, a ideia de confraternizar uma noite de sexta-feira com Potsdam não a animava nem um pouco.

Seguimos caminho na direção do hotel através da penumbra, ela na frente, eu atrás. Ouvi música. Era um palco contíguo à calçada, gente ao redor... Meu estilo. Minha companheira havia se distanciado um pouco. Deu uma olhada para trás, semblante transtornado ao me ver parado olhando para o outro lado da avenida. Continuou pedalando e tomou mais distância ainda. Seria bom atravessar a rua e se misturar aos ouvintes. Mas eu queria aquilo em companhia dela. Continuei.

Ao lado do Mercure hotel, outro palco. A penumbra se aproximava da sombra da noite. Preferia seu abraço gentil ao das quatro paredes, mas subi ao quarto.

Voltei à janela.

Dava para ouvir a música lá fora...