terça-feira, 18 de fevereiro de 2020




Garota Sans Souci


Todas as bicicletas do Mercure foram alugadas naquela manhã. Havíamos reparado em uma loja que alugava bikes e fomos até lá. Saímos com duas.

Na noite anterior, sentado em frente à grande janela do quarto, eu contemplava o lento anoitecer das altas latitudes, enquanto planejávamos ir ao parque Sanssouci na manhã seguinte. Recém chegados à cidade, tentávamos descobrir a direção a seguir. Eu avistava algo se erguendo na colina que delimitava meu horizonte. Embora muito pequeno, sua silhueta sugeria a de um moinho de vento. Um vórtice de escuridão castanho sujo no rastro do núcleo vermelho-alaranjado de um resto de sol longínquo compunha aquele quadro vivo com o Sanssouci.

Flanávamos sobre duas rodas pelas estradas de terra do parque quando topamos com três gigantes a guardar os vértices de uma encruzilhada. Troncos retos, ramos vigorosos e copas frondosas, aqueles plátanos se assemelhavam a trigêmeos. Senti como se nunca soubera o que fosse uma árvore até então. A condição de meras árvores não cabia a eles. Pela escala e integridade, aqueles seres estavam na categoria da arte monumental. Em frente ao Palácio de Sanssouci existe um espelho d'água circular rodeado por esculturas alvas. A partir dele irradiam longos caminhos retilíneos, como as torres góticas subindo ao céu, as vastas planícies de Baden-Württenberg até o horizonte, o triunfo da Música como possibilidade inesgotável de expansão criativa a coroar a alma ocidental, o ideal faustiano de transcendência espacial.

Chegada a hora do almoço, descobrimos um restaurante em um canto do parque. Olhávamos o cardápio, veio a garçonete. Nada baratos os pratos. Estávamos demorando a nos decidir. Depois disso, os garçons desistiram de nós e só atendiam as mesas de fora. Desistimos de almoçar.

Tomamos a direção do hotel. Encontramos a Luisenplatz por casualidade no caminho. Entramos pelo portão a pedido de minha companheira e seguimos pela rua, empurrando as bikes. Muitas pessoas circulando e apreciando o movimento, em pé no meio da rua, ou em mesas nas calçadas... Todos muito relaxados e à vontade. Havia um leve clima de euforia no ar. Fui contagiado instantaneamente. Seguindo pela rua, dobrando uma esquina, havia algumas mesas na calçada, protegidas por um grande toldo. Sugeri a minha companheira comermos algo. Não morria de fome. Era mais uma teimosia de ter sucesso em restaurantes alemães. A ideia de que havíamos pulado uma refeição também ajudou. Largamos as bicicletas e escolhemos uma mesa na calçada. Ninguém vinha nos atender. Não que não houvesse ninguém para tanto, ou não fossemos vistos. A quatro passos da mesa, escorada na porta com as mãos para trás, estava a garçonete. Com um suave meio sorriso, olhar perdido na direção das mesas, sua atenção era sequestrada pelo falar ininterrupto de um rapaz colado ao seu ouvido. Boné para trás, a atitude dele sabia àquela arrogância juvenil característica. Quem também havia percebido nossa chegada era uma senhora dentro do restaurante. Pelo grande vidro na parede, pude observar seu desespero com a cena de novela mexicana e personagens germânicos na porta do estabelecimento. Mas nada abalava a garçonete: jazia imóvel como as estátuas do Sanssouci. Não lembro de vê-la mudar de posição ou mesmo cambiar a expressão facial desde que chegamos. De costas para a cena, minha companheira ignorava todo o drama.

Naquela altura já havíamos escolhido o que comer. A garota resolveu nos atender. Não perdi tempo e sai apontando o que queria no cardápio. Perguntei à minha companheira o que iria pedir, e recebi um "nada", seguido de mais dois ou três "nadas" para reforçar o tom irritado da resposta. Pego de surpresa, saí pela tangente com um pedido de desculpas à garçonete antes de levantarmos da mesa.

Atravessamos a rua e paramos na primeira esquina. Não adiantou narrar todo o drama que observei no restaurante. Minha companheira ficou mais brava ainda. Segundo entendi, a razão de não tê-la deixado pedir primeiro foi ter me compadecido demasiado com a situação da garçonete, pobre moça assediada... Mais algumas colocações suas sobre garotas alemãs mais jovens e coisas dos gênero, descobri que, diferente de mim, a ideia de confraternizar uma noite de sexta-feira com Potsdam não a animava nem um pouco.

Seguimos caminho na direção do hotel através da penumbra, ela na frente, eu atrás. Ouvi música. Era um palco contíguo à calçada, gente ao redor... Meu estilo. Minha companheira havia se distanciado um pouco. Deu uma olhada para trás, semblante transtornado ao me ver parado olhando para o outro lado da avenida. Continuou pedalando e tomou mais distância ainda. Seria bom atravessar a rua e se misturar aos ouvintes. Mas eu queria aquilo em companhia dela. Continuei.

Ao lado do Mercure hotel, outro palco. A penumbra se aproximava da sombra da noite. Preferia seu abraço gentil ao das quatro paredes, mas subi ao quarto.

Voltei à janela.

Dava para ouvir a música lá fora...











quarta-feira, 2 de novembro de 2016





Breve meditação sobre a semana



A rua. Os carros movidos a petróleo. Os semáforos fechando. As cantadas de pneus freando. Os anúncios dos carros de som. As latas de metal escrito "cerveja". A minhoca de metal japonesa serpenteando numa plataforma de concreto. Sucata japonesa, pois em nenhum canto desses 8.515.767, 049 quilômetros quadrados se é capaz de construir um chassi de trem. Os cartazes de refrigerante, essa bebida sempre presente nos momentos especiais da vida. Afinal, hoje é um dia especial: é o "último dia da semana". O povo se acotovelando numa atmosfera eufórica análoga a da segunda vinda de Cristo.

Nunca entendi essa empolgação com a sexta-feira.

Depois de trabalhados um, dois, três, quatro dias, exaustos, ainda precismos encarar mais uma sexta. "Apenas quatro dias", dirão alguns, mas são quatro dias após um final de semana que começa com a palavra "fim", de tão curto. Embora tenha dois dias no calendário, o aborrecimento que se experimenta em um deles demanda a necessidade de um dia adicional para descansar. Mas daí o despertador já está tocando bem cedo na segunda, a famigerada segunda-feira. Nesse contexto, fica fácil concluir que o desprezo por ela vem do domingo, do aborrecimento massacrante desse dia... 

É de se lastimar o contraste entre os semblantes da sexta e os do domingo, sobretudo no domingo à noite. Schopenhauer dizia que, na vida civil, o domingo representa o aborrecimento, e os seis dias da semana a miséria. Todavia, acredito que o sábado seja um bom dia, pois é um dia livre seguido de outro livre. Na verdade a semana está configurada para o trabalho; o domingo existe para o fastio que clama pela atividade, a semana de trabalho.

E eis que a saudade experimentada na sexta se transforma no tédio dos casais; a necessidade de distração em ressaca; o descanso, nos corpos esparramados em frente ao besteirol da tv. O alívio momentâneo que a sexta-feira traz aos desempregados se transforma em desespero na eminência de mais uma semana de inércia forçada e incerteza. Alguns são confrontados com uma sensação de vazio excruciante no domingo à noite, algo realmente desafiador. 

No domingo à noite o tempo esfrega sua supremacia em nossas caras. Nem é bom pensar muito a respeito. A solução é focar na segunda. Apenas a perspectiva dela traz algum alívio.








sexta-feira, 25 de setembro de 2015



Rex



Rex sempre fica embaixo de uma marquise estreita quando chove. Deitado sobre o piso nu, fica meio encharcado pelos respingos da chuva quando bate no chão. Mas ele fica ali, parado, em silêncio, com o olhar melancólico encoberto pelas longas mechas de pelo acinzentado.
Sua dona, uma velha doente de voz irritante, o xinga a todo momento da janela. Com gritos e palavrões, manda que saia dali, que vá para dentro da garagem se abrigar. Mas ele nem se mexe. Na verdade, Rex é xingado sempre, até em dias ensolarados sem nuvens. É xingado por nada, apenas por estar na sua, pois ele é super na dele... Talvez por isso sua dona o tome por maluco, como os garotos que nos conselhos de classe são criticados entre os professores por serem muito quietos. 
Às vezes Rex se empolga e sai de sua inércia. Foge pelo portão do quintal e sobe correndo até a frente da casa à procura da companhia dos donos. Mesmo assim é xingado. Sob berros, o mandam descer... Cabisbaixo, ele volta lentamente para o quintal, como se tivesse sido esmagado por uma pedra enorme... 
Talvez Rex não goste tanto assim de ficar na marquise estreita nos dias de chuva... Talvez preferisse  estar em um local sem respingos, como o interior seco da garagem. Só que lá fica Bela. Velha, pelo curto, patas traseiras arqueadas, olhos esbugalhados e braba como o diabo. Não tolera que transitem perto dela. O rapaz que aluga a peça ao lado da garagem pode atestar a índole de Bela quando, distraído, certa vez passou perto dela na garagem. Com seus olhos esbugalhados, avançou nele.
Ninguém entende as reservas de Rex. Nem quando estão comendo perto dele. Até estica um pouco o focinho, põe-se nas quatro e ensaia uma aproximação, mas é o máximo que faz... Logo recua com seu olhar humilde e volta para a marquise. Rex é capaz de reprimir seu mais poderoso instinto. Antes passar necessidades, do que acabarem com ele. 





domingo, 24 de agosto de 2014



A heroína do vagão



Achei uma mesa ao lado do janelão no quarto andar, o quarto de cinco andares repletos de estantes de livros. A vista até que é razoável: a cobertura de concreto armado da universidade encimada por uma massa verde de árvores até o horizonte de onde brota o topo de um edifício. Bem diferente do estreito horizonte ondulante pelas ondas de convecção que brotam do asfalto abrasador nesse dia de verão em pleno agosto, aqui no paralelo trinta graus sul. Embora inspiradora, a vista é o de menos. O mais importante é que aqui é tranquilo. Descobri que as bibliotecas das universidades são verdadeiros oásis de tranquilidade em meio à correria urbana. Olho para os livros placidamente ordenados lado a lado nesse ambiente climatizado, silencioso e acarpetado e me sinto feliz pela vida que têm. Tudo estaria perfeito se não fosse o click de um mouse noutra mesa... Não um click lá, outro acolá, mas um frenesi ininterrupto de clicks tal qual uma rajada deles.
Até pensei em trazer um computador para escrever, mas é um trambolho que incomoda carregar. Hoje era dia de sair de mãos livres. Por isso peguei um pequeno caderno velho e uma caneta para enfiar nos bolsos da calça. Também tive que enfiar um livro de bolso para negociar no sebo e poder estar aqui, pois tinha apenas metade da ida e volta de trem. Então saí pelas ruas da cidade com aquele volume nas calças, como se tivesse acabado de sair de uma clínica de implantes de próteses nos glúteos.
Ao sair de casa, ao parar para a travessar a rua, tive que esperar um tempo além do meu pavio até todos os carros passassem. Sentia-me meio esquisito. Pensei em tomar a primeira esquina em direção ao centro, mas tomei outra mais adiante para  evitar que alguns vizinhos me vissem. Em direção ao centro, era como se todos em toda parte estivessem me observando: de dentro das casas, nas calçadas, nos carros que passavam, até cães e gatos. Ocorreu-me a possibilidade de rejeitarem o livro, o que me obrigaria a dar meia volta e retornar para as quatro paredes do meu quarto. Mas estava em boas condições, era um autor cultuado... Também era o meu último livro para negociar. Já tive mais livros; a maioria foi vendida em tempos de crise. Restaram apenas alguns de que não pretendo me separar, livros sobre a arte da ficção e uma novela chamada Amoka melhor coisa que já foi escrita, em minha opinião.
Não gostava quando tinha que parar para esperar os carros passarem. Era um alívio quando conseguia chegar ao outro lado da rua de uma vez. Também não queria contato visual com ninguém. Quando via um grupo de garotos bem à frente, atravessava com a maior satisfação... As ruas e praças daqui estão cheias deles; é a cidade das turmas de garotos. Mas quando passei por uma lancheria, onde raramente comia, logo adiante vinha o atendente pela calçada. Pensei em passar sem fazer contato visual, mas mudei de ideia. Cumprimentos.
Bem, cá estou nesse depósito de conhecimento, graças à venda de um livro que prometia pelo autor e título, mas que não me prendeu além da vigésima página. Uma garota na mesa da frente encontrou um conhecido noutra mesa. Levantou, trocaram beijos e conversam... Também me encontro aqui por causa de outro livro. Ao contrário daquele deixado no sebo, esse li sessenta páginas de uma vez na primeira noite em que o abri. Também me inspirou a escrever, e, antes de mim, a Anaïs Nin, que escreveu um prefácio incrível em certa edição. 
Pensava sobre isso na estação enquanto esperava a lagarta de metal acinzentada. Foi uma espera longa, de quase quatro décadas, até que o trem chegasse a essa cidade, uma cidade a cinquenta quilômetros de POA. Aliás, esses cinquenta quilômetros, com sua dúzia de estações, são a extensão total de trilhos para transporte público em um Estado inteiro, e param às vinte e três horas. Quando penso nisso, lembro das cidades europeias, como Praga, por exemplo, uma cidade do leste europeu parada no tempo, mas cujo trem funciona vinte e quatro horas, há mais de um século. E se lembro de uma cidade como Hamburgo, com sua rede de metrô ramificada pelos bairros, sinto saudades do que não vivi. 
Dentro de todo vagão existe uma placa afixada na parede com o nome do fabricante japonês e a sugestiva data de fabricação: “1984″. Um número bem apropriado, pois evoca o universo orwelliano de retrocesso social, o que exemplifica muito bem o abismo de infraestrutura urbana em que vive a gente daqui. Imagino que o povo de onde veio esses vagões deva estar andando em algo similar à naves atualmente. Mas o pior é o que vejo ao longo da linha do trem: ilhas de miséria e casebres; na melhor das hipóteses, conjuntos habitacionais deprimentes com telhado "Brasilit", frutos do programa de habitação pública desse país. Quanto melhor é a qualidade do que você enxerga na rua, melhor é seu bem estar e vontade, melhor é sua mentalidade, civismo, sentimento de identidade coletiva… Mas isso não é interessante pra eles. Deve nos ser negado...
Agora só ando de trem, porque é bem mais barato, confortável e rápido do que o transporte rodoviário. Também porque nos últimos tempos tenho andado meio solitário. Às vezes faço viagens apenas pelo contato humano que os vagões oferecem. Estar na companhia de desconhecidos sem trocar palavra já é o suficiente. 
Tudo muito tranquilo, a lagarta de metal seguia seu rumo até parar na primeira estação. Uma mulher entra com um garoto literalmente pendurado pelo braço. "Eu gastei dinheiro com isso pra você perder!", grita e sacode a criança que segura um DVD que quase deixara cair no vão entre a plataforma e o vagão na hora de embarcar. Está possessa. Esbraveja e sacode o menino como um boneco de pano. Ele não se contém mais e desata o choro que até então segurava. Ela o ergue com vigor e o atira no colo deitado... Os dois silenciam... A mãe fita o vazio com o semblante contorcido. O menino jaz em seus braços com dois riscos de lágrimas secas nas bochecha, olhando a capa do DVD. Ambos entorpecidos num paradoxal abraço dolorosamente agradável.
Sempre há interações num vagão em movimento, de olhares à hora de dar lugar a alguém... Esse último é bom porque você simplesmente cansa de ficar sentado o tempo inteiro e só fica aguardando a hora de ceder lugar. Eu já estava com a bunda quadrada quando comecei a cuidar sempre que a porta se abria nas estações para ver se não entrava algum idoso, grávida ou alguém com bebê de colo... Duas estações e nada... Até que na próxima entrou um velho bem magro, camisa desabotoada no peito, barba branca e chapéu de palha. "O senhor pode sentar aqui", fui levantando. "Muito obrigado pela gentileza".
Que alívio... Agora estava em pé, escorado numa das portas laterais. Uma garota entra e divide a porta comigo. Notei o choro de uma criança pequena no outro extremo do vagão, mas evitei olhar, mantendo o rosto pra frente. Também notei que a garota ao lado prontamente tirou alguma coisa da bolsa. Interpretei o gesto como o abrir de um livro, "será que é um livro?". Com a cabeça fixa, torci bem o olhar para o lado dela; era um livro, grosso, páginas amareladas. "Sobre o que seria? Só preciso de uma palavra". Resolvi dar uma olhada na direção do choro. Era um menino pequeno sentado nos joelhos de uma mulher afundada no banco com ar exausto, apenas segurando as mãos da criança que gritava de verdade. Aquele choro tomou conta do vagão, o vagão era só aquele choro. Na hora de voltar a cabeça para frente aproveitei e dei uma olhada de relance no livro da garota, mas só pesquei alguns emes e artigos... 
Achei que o choro fosse dar trégua durante a viagem. Quatro estações e nada. Alguns já davam sinais de desconforto e viravam para olhar com reprovação na direção do berreiro... 
Reparei em uma adolescente loira de olhos verdes e pele bem clara sentada de lado num banco, conversando com um carinha em pé. Entre eles, um outro rapaz sentado ao lado dela... Quando percebeu que eu a olhava, começou a brincar com uma mecha de cabelo do rapaz ao lado. "Namorado", pensei... O vagão estava toleravelmente cheio. Um gordinho de cabelo crespo estava com um gordinha de camiseta branca e barriguinha de fora. "É no balanço da rede, é no balanço do mar...", cantava o gordinho. A loira de olhos verdes conseguia conversar com o carinha e retribuir meus olhares ao mesmo tempo. Ela era a única entre eles que notava minha presença ali; para o resto do grupo em não existia. Enquanto uma nova estação se aproximava, o carinha começa a se despedir da loira. Uma garota de cabelo preto se levanta para descer junto com ele. Aquele grupo que eu havia tomado por tês, de repente, revelou-se quatro. Eu não havia reparado na de cabelo preto. O gordinho abre uma lata de cerveja, "é no balanço da rede, é no balanço do mar, que eu vou plantar uma semente, erva doce da paz", canta se equilibrando com a lata no vagão. A gordinha fica meio sem jeito. A garota de cabelo preto o aponta para o grupo com uma risadinha.
"Unhéérr, Unhéérr, Unhéérrrrrrrr"... 
"Vamos lá mulheres... Sei que vocês sabem como acalmar uma criança". De repente o choro cessa. "Por Júpiter, um milagre"... Olho pro lado e vejo uma heroína em pé com um pacote de balas aberto na frente da criança.
O carinha que conversava com a loira desceu com a garota de cabelo preto. Os dois namorados ficaram a sós, num clima ameno até que ela disse alguma coisa naquele tom feminino enérgico... "Você também faz assim!", retrucou ele como um animal acuado... Ela virou o rosto para a janela. Pude ver o reflexo da tromba. Ele parecia pior: ombros encolhidos, cabeça baixa, mãos entrelaçadas entre as coxas, murcho... E assim permanecia depois de terem se levantado para sair. Esperando a porta abrir, ela o abraça em câmera lenta e lhe toca os lábios com suavidade. 










sábado, 6 de abril de 2013



Lembranças



Viver e recordar são indissociáveis. Uma vivência particular passa, mas as imagens dela ficam estampadas na tela mental. Por isso suspeito que a lembrança possa se sobrepor à vivência. Confesso que já tive a estranha sensação de não ter existência concreta, apenas lembranças: um apanhado virtual de imagens de coisas vividas. Parece que o tempo tem culpa nisso, pois cada segundo que o ponteiro do relógio pula já é passado. A duração das experiências vividas é regida pela lei do princípio meio e fim. Fora isso, existe a velocidade em que esses três elementos se sucedem. Uma vivência dura na medida de nossa sensibilidade à velocidade do tempo.

Verdade é que o passar inexorável dos anos altera a qualidade de nossa percepção sobre a velocidade do tempo. Crianças e adultos percebem isso de forma diferente.. Na infância o tempo é muito mais dilatado; um mês é uma eternidade, e cada minuto é vivido com espontaneidade. Ao contrário, nós, adultos, somos tomados pela perplexidade ao final de cada dia. Sentimos o tempo passar com velocidade alucinante, mas, ao contrário das crianças, temos a incômoda sensação de que não o estejamos aproveitando satisfatoriamente.

Então passamos a antegozar momentos agradáveis: o fim de semana, um passeio, encontro com a namorada... Serão ocasiões em que poderemos "esquecer do tempo", mas a lei do princípio meio e fim, a estrutura em termos de horários e compromissos, põe termo nesses momentos que gostaríamos de congelar. Se o tempo reduz as experiências boas a lembranças, que sentido há na ansiedade de antegoza-las? Dizer é fácil. Insatisfeitos, alguns vão atrás de experiências cada vez mais intensas na tentativa de reter o momento, parar o tempo. Mas sensação de que ele não pode ser retido, que nos escapa como areia entre os dedos, permanece. Talvez o caminho seja apenas fluir, se entregar, e os bons momentos, inevitáveis que são, serão melhor aproveitados e não deixarão tanta perplexidade por terem passado.

Viver e lembrar. Queremos vivenciar momentos agradáveis, repeti-los. Mas no final das contas só restará uma lembrança. Quando acordamos para o caráter volátil das vivências só nos resta valorizar as lembranças. As boas nos envolvem em devaneios agradáveis, as más servem de lição. Por isso, tão ou mais importante quanto o que se vive é o que se lembra. E se nossas vivências se tornam lembranças, melhor que sejam boas. Tal consciência sugere usar o bom senso a fim de conduzir as experiências presentes da forma mais positiva possível, pois tudo passa na velocidade de um raio...

Desde que começara a ler essas linhas, várias inspirações e expirações já passaram, acaso prestou atenção em alguma? A respiração nos dá uma noção ritmo implacável do tempo, mas, curiosamente, quando prestamos atenção nela, somos tomados por uma sensação reconfortante de eternidade. A eternidade é maior que o tempo, o contém. O Tempo é uma lei no contexto da aventura humana. "Ao tormento da existência vem ainda juntar-se a rapidez do tempo que nos inquieta, que não nos deixa respirar e se conserva atrás de cada um de nós como um vigia dos forçados de chicote empunho", disse Schopenhauer

Não é o lugar em que se está, é a forma como o momento é vivido em graus de entrega a ele. Talvez não seja o "que se faz" nos moldes pré-fabricados de experiências "felizes". Talvez seja o que se é.







quarta-feira, 3 de abril de 2013



Seboso


Não havia como prever quando viria. Embora mantivesse certa frequência, o dia em que voltaria era incerto. Acontecia sempre quando já haviam "esquecido" sua última visita. "Esquecido" porque não se tratava de uma visita comum, como a dos outros clientes, pois quando Seboso estava presente a casa ficava em alerta. Tão marcante era presença dele que, durante a semana seguinte, virava assunto das comadres da cozinha. A faxineira, uma mulherzinha espevitada, franzina, choramingava pra patroa, gesticulando em tom dramático  quando falava da última visita de Seboso. 
Fato é que, quando menos se esperava, do nada, a figura volumosa de Seboso já estava refestelada no meio do salão com a cara espetada no cardápio. Cento e tantos quilos passavam imperceptíveis pelo portão do restaurante, caminhando com uma rapidez invejável a muito atleta. Com a testa coberta de gotículas, adentrava o salão como em uma missão de vida ou morte. Tal qual monólito, assentava-se solidamente no lugar escolhido. Estabelecia um sítio para comer sossegado, sem ninguém para recriminá-lo na hora das refeições. O garçom observava a cadeira sobre a qual Seboso estava sentado e calculava o peso que cada uma das esguias pernas de madeira estaria suportando, constatando como eram resistentes. Quando ia atendê-lo, via que estava mais relaxado e lhe oferecia bebida. Além dela, Seboso aproveitava para pedir tudo que tinha direito. Começava com uma uma porção de yakisoba e uns dois temakis. Enquanto eram preparados, ia se servir do buffet de sushi. Aquelas rodinhas multicoloridas eram um sonho exótico de paladar, ao ponto de passar dias planejando e acalentando a ocasião de seu encontro com elas. 
Embora louco de fome, seboso sabia disfarçar bem sua paixão pela comida. Esperava na fila com paciência. Quem o visse se servindo com toda calma nunca imaginaria a avidez contida naquele corpanzil. Apenas um olhar mais atento perceberia um ar de seriedade além do normal na fisionomia de Seboso, um traço de severidade em seu caráter. 
Atrás do buffet, lado a lado, um grupo surreal de enroladores de sushi observava Seboso às espiadelas enquanto trabalhavam. Cada qual com a cabeça cingida por uma faixa com ideogramas que ignoravam o significado. Eram tão orientais que o chefe deles, um moreno de sobrenome alemão, se orgulhava  por saber contar até dez em japonês. O outro, um magrão de cabeça raspada, amigo de longa data do chefe, era o segundo mais importante do grupo. Muito contido, mas não ao ponto de deixar escapar rompantes de arrogância e pedantismo eventuais. Também era parente da patroa, e por isso todos lhe davam razão na roda de conversa fiada.  Havia também um baixinho idiota que se assemelhava a um barril. Expressava sua gratidão canina de ser aceito no grupo puxando o saco e divertindo-os às custas de outros. O menos bizarro era um rapaz de aparência serena, com um "yellow submarine" tatuado no antebraço. Certo é que  todos eles desprezavam aquele cliente, tanto que o apelido maldoso "Seboso" fora inventado por eles. O chefe o desprezava mais por afetação moral de puxa-saco da patroa, para quem Seboso não era bem-vindo; o magrão de cabeça raspada porque desprezava qualquer um que aparecesse na frente do buffet; o baixinho porque sempre concordava com o grupo; o yellow submarine porque se fazia de louco e ia na onda. Inocente, o cliente se servia sem suspeitar da maldade daqueles que preparavam a comida que punha no prato.
Seboso volta à mesa e senta para comer. Termina o primeiro prato de sushi. Chegam os temakis. Come os dois com voracidade e volta ao buffet. Quando o garçom entrega as porções de yakisoba, o cliente aproveita para pedir mais temakis. Termina o segundo prato de sushi. Chegam os temakis, até que, repleto, Seboso entra num estado de serenidade profunda. Folheia placidamente o cardápio, dissecando a descrição dos ingredientes prato por prato. Depois tira seu telefone do bolso e fica brincando num joguinho. 
Volta ao buffet novamente e serve-se de novo. Enquanto isso, da cozinha, a mulherzinha, a faxineira espevitava, com os olhos arregalados, espia Seboso pela fresta da porta que dá para o salão. Passa a mão pela fresta com um molho de chaves, sacudindo-o impacientemente para que algum garçom venha pegar. O baixinho idiota escuta o molho sacudindo e parte para buscá-lo. Nervosa, a mulherzinha lhe entrega logo as chaves dizendo:
"Tranca logo o banheiro!". 
O baixinho vai fazer o que a mulherzinha mandou, mas no caminho é chamado no salão e tem que atender a uma mesa.
Sem suspeitar de nada, Seboso sente que o laxante que tomara horas antes está prestes a fazer efeito. Volta à mesa depressa, larga o prato e toma a direção do sanitário. No caminho, prepara um biquinho para vomitar também. Momentos depois, sai do banheiro com uma ou outra nódoa na camiseta. Mais aliviado, pode continuar comendo.
Atendido o cliente que lhe chamou, o baixinho parte atarantado para cumprir sua missão de trancar o banheiro. Vê Seboso no salão e fica mais tranquilo. Só por descarga de consciência, dá uma olhada pela porta do banheiro, mas o estrago está feito. Dessa vez não deu tempo. 
A descrição do estado em que Seboso deixou vaso, pia e piso, deixa a mulherzinha quicando de histeria e soltando fumaça pela cabeça.






sábado, 23 de março de 2013



Renascer


Uma da madrugada. Um pobre coitado, chinelos de dedo, roupas sujas e uma calva ladeada por rebeldes grisalhos se  encolhe numa parada de ônibus. É uma noite fresca, quase fria, boa para estar dentro de casa. De repente o som tão aguardado de um motor a diesel ao longe lhe arranca do torpor da espera, "será que desta vez é?" O volume do som aumenta. Arregala os olhos ao ver dois faróis crescerem no horizonte estreito da avenida. Aperta os olhos, lê o letreiro: é o ônibus para a sua cidade, a dez quilômetros dali, o último da noite. Estica o braço para atacar o veículo e se surpreende com a espontaneidade do próprio gesto, como se ele simbolizasse uma disposição de recomeço, sua vontade de se aprumar. A condução para, banhando de luz maternal a parada escura. A porta da frente se abre. Mal sobe o primeiro degrau, sente o calor no interior do carro. Meio curvado, chega bem perto do motorista. Constrangido, falando baixinho, explica que está sem dinheiro e pede carona. O motorista ouve, sentindo o bafo de álcool do pobre coitado, e diz:
“Pela porta de trás!”.
Animado como uma criança, mal desce correndo para embarcar na porta traseira, o ônibus arranca de repente e parte em alta velocidade. 
Fica ali, paralisado por um instante no meio do asfalto, enquanto sua perplexidade vai se dissipando com a fumaça e o ruído do motor que some no horizonte em direção à sua cidade.







terça-feira, 12 de fevereiro de 2013











Por uma vicissitude do destino, desde a gestação, suas veias foram preenchidas com certo fator sanguíneo. As implicações dessa qualidade de sangue ficariam claras naquela noite em que sua família se preparava para dormir. Enquanto tomava suas pílulas de prevenção noturnas, em frente ao espelho do banheiro, viu um fio vermelho lhe escorrendo do nariz, ao mesmo tempo em que o rosto preocupado de Eva apareceu refletido lado a lado ao seu. Horas antes, depois do último informe do núcleo de patogenia do CS, ficaram silentes. Embora seu tipo sanguíneo houvesse sido incluído na lista dos vulneráveis ao vírus letal, não disseram palavra um ao outro. Como era praxe em situações críticas, sua cumplicidade se baseava no silêncio, espécie de acordo tácito na manutenção do clima de tranquilidade. Silenciar nos momentos difíceis era a coisa certa, pois qualquer palavra ou ação de boa vontade poderia evidenciar fuga ou disfarce. Mas, naquele momento, o calar atestado em anos de convívio foi traído por suas expressões preocupadas refletidas no espelho. A vulnerabilidade sanguínea de Ivan eliminou suas chances de conversão fora do Centro de Saúde. Já não havia como escapar da quarentena. Embora não temesse por si, desde o início da epidemia Ivan passou a lidar com o medo recorrente de que alguma mutação tornasse os fatores sanguíneos de Eva e Márcio, seu único filho, vulneráveis da noite para o dia. Seu único consolo era que suas estruturas genéticas os tornavam aptos à conversão, diferente de uma minoria que estava fadada a perecer pela impossibilidade física de ser convertida. Avaliou com Eva a necessidade de comunicarem imediatamente o caso ao CS, mas ela sugeriu que esperassem até o dia seguinte, dizendo que o sangramento talvez fosse devido ao ar seco. Além da demasiada baixa umidade do ar, havia o calor infernal, atípico para a estação. Para aliviar o desconforto se carecia de boas alternativas. Há tempos que os clubes estavam fechados como medida de prevenção à disseminação do vírus, pois desde que surgiu não parou mais de mutar. Informes constantes em casa e nas ruas, através dos telões públicos, alertavam para o risco dos condicionadores de ar convencionais, cujos filtros deveriam ser descartados a cada uso, o que não chegava a ser problema substancial em virtude de o CS manter um plantão de entregas de filtros com selo de aprovação. Mesmo assim, Eva permanecia temerosa por Márcio, achando melhor evitar ligar o aparelho.
Ivan passou a noite e a madrugada sem dormir, preocupado com a situação. Um pouco antes do amanhecer, quando ensaiava algum sono, foi acordado por uma forte luz branca trespassando a janela do quarto. Eva jazia sentada à beira da cama, em frente à janela. Cenho franzido, com a mão espalmada protegia os olhos da claridade invasora. Ivan foi à janela e divisou uma unidade do Centro de Saúde estacionada em frente a casa, buscou o olhar da esposa e compreendeu tudo. Foi ao quarto de Márcio para se despedir. A porta de vidro do quarto hermeticamente vedado já estava trancada. Através dela, viu o menino sentado, mexendo em seu kit de DNAs sintéticos. Ao ver o pai, saltou da cadeira e correu em sua direção, batendo a barriga e espalmando as mãos contra o vidro que os separava.
“Até breve, filho”, despediu-se Ivan.
“No dia dos pais, a mamãe me levará ao Centro de Compras. Vamos buscar um presente para quando você voltar”, disse o garoto.
Eva se aproximou vagarosa, a barra da camisola roçando o chão como se o corpo pairasse no ar. Tocou o braço do marido com a palma da mão. Avisou que os agentes do CS estavam preparando as medidas profiláticas preliminares. Ivan pediu a ela que fosse com Márcio, o quanto antes, tentar adiantar a conversão sanguínea dos dois para alguma das tipagens recomendadas pelas autoridades do Centro de Saúde. A lista de espera para a conversão era extensa, toda população estando consciente da necessidade de efetuá-la em tempo hábil a fim de sobreviver.
Preocupado com o futuro dos seus, Ivan desceu à sala. Os agentes de saúde do CS aguardavam.
“Estique o braço e puxe a manga, por favor”, pediu um deles.
A luz vermelha de um scanner portátil riscou as paredes da sala enquanto varria o antebraço de Ivan do pulso ao cotovelo. Quando passou pelo microchip, soou um bip, e o nome Ivan Ivanovitch Iejov apareceu com a palavra "apto" no display do aparelho. Um segundo bip deu por executada a tarefa de conferir seus dados pessoais para remover Ivan da lista de espera de conversão sanguínea.  Instruíram-no a vestir um traje branco que cobria todo milímetro de pele da cabeça aos pés, havendo apenas uma viseira e um tubo de respiro que foi conectado quando Ivan se acomodou numa maca na traseira do veículo que lhe conduziria ao Centro de Quarentena.



A não ser pela iluminação pública que entrava por uma minúscula janela na lateral, o compartimento traseiro do veículo era impenetrável até mesmo para o ar. Dentro dele, embrulhado naquele traje, Ivan suava em bicas. No caminho ao Centro de Quarentena se levantou da maca para olhar pela janela. Apesar do toque de recolher preventivo, viu que algumas pessoas trabalhavam na decoração do Centro de Compras, empenhadas na instalação de telões extras para o dia dos pais. A multidão ali seria grande dentro de poucos dias, embora a ciência geral fosse da necessidade de prevenção contra o vírus letal. Entretanto, tal data era um alívio, pois ficava momentaneamente permitida a aglomeração de pessoas, diferente dos dias normais quando se evitava o contato com gente na rua. Reuniões em público eram desaconselhadas. Em tais ocasiões extraordinárias, a tensão diminuía, pois os agentes do CS reforçavam as medidas preventivas, dando instruções e catalogando indivíduos através de câmeras de alto alcance que captavam em tempo real qualquer eventual manifestação de sintoma em meio à multidão. Também procuravam Anônimos e rastreavam expressões faciais suspeitas que revelassem más intenções. Ivan recordou a promessa inocente do filho em presentear-lhe quando retornasse: “pelo menos ele sairia um pouco de casa com a mãe”. 
Passaram por uma unidade remota do CS. Na frente havia uma multidão enfileirada, aguardando a distribuição de senhas de atendimento médico. Como sempre, as filas eram formadas por indivíduos interessados na conversão, mas a maioria era de Sexadamis, abreviatura para “seres experiência adâmica”, também conhecidos como Sexterros, mas esse era considerado termo politicamente incorreto, por aglutinar a expressão “seres tentativa e erro”. A evolução científica vislumbrou um caminho para a clonagem do primeiro homem, naquilo que se nomeou de Projeto Adâmico, mas o processo rumo ao primeiro clone fisiologicamente são ainda estava em aperfeiçoamento. E as tentativas que inicialmente pareciam ter sido bem sucedidas apresentaram defeitos no desenvolvimento em longo prazo. O sistema de saúde lidava com a primeira geração de uma série de anomalias decorrentes dos primeiros passos do projeto. Aos poucos, um novo grupo de indivíduos, caracterizados por deformidades físicas e disfunções fisiológicas congênitas similares, entrou para o convívio com as pessoas normais. Para alguns Sexadamis o tratamento era simples, bastando a ingestão permanente de medicamentos, como os que sofriam de incontinência urinária crônica, ou gotejassem sêmen, mas outros necessitavam de cirurgias para correção de deformidades anatômicas. Mas para outros era difícil, pois desenvolveram anomalias desconhecidas para as quais ainda não se dispunha de tratamento. Mas, a cada dia, novas pesquisas para ajudá-los faziam a Medicina avançar.
Após um curto cochilo, Ivan acordou. Haviam atravessado a ponte retrátil sobre o oceano até uma ilha. Com uma área composta por dezenas de quilômetros quadrados, sobre ela estava pousava a Sede Governamental da província, local que abrigava o complexo do Centro de Saúde. Devido às sucessivas aterragens de lixo, tornara-se o ponto mais alto do continente, podendo ser reconhecida do espaço. Percorreram mais alguns quilômetros em solo plano e arenoso até que Ivan visualizou, ao longe, uma vasta colina branca de topo perfeitamente arredondado e liso. Tratava-se de uma estrutura peculiar, tal qual um monte nevado, um imenso domo a proteger um tesouro: os pomares de integridade genética da ilha. Era uma preciosa coleção de árvores frutíferas que rivalizava com as das outras províncias devido à constituição genética original de suas espécies. Ter uma árvore frutífera como aquela plantada no pátio de casa era um item importante no projeto de vida de qualquer família, mas, com o valor da muda excedendo a capacidade de aquisição do cidadão médio, era um desejo que só se realizava com muita economia. Além do banco de integridade genética, também havia viveiros de mudas manipuladas geneticamente, espécies resistentes às variações climáticas abruptas. Anos de melhoramentos possibilitaram a uma parcela das espécies frutíferas adaptar-se a qualquer ambiente, mesmo os de condições extremas. Do solo da ilha, aqui é acolá, brotavam largos cilindros para escape de metano, flamejando como tochas acesas. Toda energia da Sede Governamental provinha deste gás, fato que a tornava exemplo de autossustentabilidade e atestava sua idoneidade e excelência científica.
Ivan logo avistou um imenso prédio, a sede do governo provincial e do Centro de Saúde. Impressionado pela magnificência da construção, reparou no contraste entre a sobriedade da coloração externa e as dimensões colossais que lhe conferiam uma aura de mundo à parte, pairando sobre a ilha. Era extremamente alto sem ser esguio. Tal conjunto de proporções o assemelhava a um trapézio maciço, vazado verticalmente por listras rasas e estreitas onde se empilhavam minúsculas janelas. A alguns quilômetros antes de alcançá-lo, o veículo parou em frente a uma alta parede de fogo. Extinguiu-se uma secção das labaredas, e o veículo seguiu caminho por um declive. Uma grande porta se abriu, iluminando os primeiros metros da entrada de um túnel. Ouviu-se o estrondo abafado das portas se fechando atrás do veículo.  Para guiá-los, apenas a luz dos faróis. Imaginando ser o efeito de curvas percorridas em alta velocidade, Ivan se contraia na maca. Após um período de tempo relativamente extenso, o veículo parou. As portas do compartimento foram abertas. Tão logo desceu, Ivan foi obrigado a contrair os olhos e protegê-los com o braço da luminosidade intensa. Notou que estava numa ampla estação com outras unidades de transporte estacionadas. Enquanto varria aquele enorme espaço fechado com o olhar, mais acostumado à claridade, inclinou o rosto para cima e leu gravado na rocha a recepcionar os recém-chegados: 


Eugenia é a autodireção da evolução humana


Pelo aspecto cristalino da rocha, ficou evidente que se tratava de sólido xisto, estando o local bem abaixo da espessa camada de lixo.
Enquanto os agentes atavam Ivan, já despido, a uma maca robótica, lhe informaram que passaria por alguns estágios de esterilização antes de uma entrevista rotineira feita aos recém-chegados. Quando se deu conta, já estava com uma agulha presa em cada antebraço. Pelo direito, sangue lhe era drenado; pelo esquerdo, um doloroso fluido, de constituição densa, injetado.
No primeiro estágio teve a cabeça coberta por uma espécie de capacete negro de boa densidade que lhe cortou completamente a visão. Só pode perceber o porquê daquilo depois de notar um tênue clarão através dele. Em seguida, foi submetido a uma espécie de banho a seco. Só na câmara seguinte notou que estava completamente destituído de pelos e cabelo, enquanto um braço robótico recolhia raspas de sua pele. Um laser roxo projetou-se veloz em seu antebraço direito, bem na altura do microchip.



Acordou com a sensação de quem tomara um porre de vinho barato. Teve dificuldade para abrir as pálpebras, e o corpo pesava. Lembranças vagas como as de um sonho lhe vieram à mente. Recordava das tentativas de abrir os olhos, franzindo as pálpebras para olhar em volta, e da intensa claridade que o impedia. De repente, um aperto no peito ao constatar surpreso que não havia nenhum ponto de referência para focalizar a visão. "Sala", não seria um bom termo para descrever aquele ambiente, pois era de um branco fluorescente sem cantos nem arestas distintas. Pela primeira vez na vida foi tomado por uma sensação estranha que poderia ser descrita como a de estar encapsulado numa esfera suspensa em algum ponto indefinível do tempo e do espaço. O antebraço direito estava dolorido. Tentou levantar a mão esquerda para tocá-lo, mas, embora não estivesse aparentemente atado a nada, não conseguia movê-la. Estava totalmente paralisado. Reagia com todas as forças para sair da inércia e retomar o controle de seus movimentos. Depois de algumas tentativas frustradas, com muito esforço, pensou ter deslizando-a a mão esquerda sobre o abdômen até o antebraço direito, onde descobriu uma protuberância que se deformava com a pressão do polegar. Não percebeu exatamente em que momento certa voz se fez presente no ambiente. Pareceu-lhe ser enquanto esfregava o braço dolorido, mas não tinha certeza de que ouvira algo. Não havia sensações, apenas impressões. Tudo era muito tênue. Os momentos se alternavam de forma volátil, dando a impressão de que não havia diferença entre antes e depois.
“Injetamos um biochip...”
Pensou ter ouvido ou relembrado de algo.
“Estamos trabalhando para melhorar isso. Injetamos um biochip no senhor”.
“Para que serve?”, Ivan imaginou ter indagado à voz, embora sentisse os lábios e a língua paralisados.
“Serve para monitorar sua estrutura neural durante a quarentena. A evolução das pesquisas sugere que num futuro próximo não haverá mais desconforto na fase de inoculação. Estamos trabalhando no desenvolvimento de um cestoide biônico estéril, formado apenas de escólex. Nos estágio atual, a necessidade de inibir a formação de proglotes nesses cestoides nos obriga a lidarmos com soluções oleosas. Mesmo assim, elas representam um passo além aos implantes tradicionais de microchips subcutâneos. Como andam os sangramentos?”
“Desde a última noite não tive nenhum.”
Ivan imaginou que a voz tivesse dito alguma coisa sobre o ar seco da estação.
“Mas é bom monitorá-lo algum tempo por precaução. Alguma dúvida?”
“Como os agentes do C.S. não se infectam se não usam macacão de proteção?”
“Nossos agentes são todos selecionados de acordo com o tipo sanguíneo. Recrutamos apenas aqueles que são imunes à anomalia.”
“Como soube que meu sintoma era o sangramento?”
“Sua esposa comunicou quando fomos acionados sobre o caso.”
De repente, Ivan teve a impressão de que estava ouvindo Eva:
“Marido, confiamos no CS para livrar nossa sociedade do vírus assassino.”
“Você passará a uma célula de quarentena”, Ivan pensou ter ouvido antes de imergir na inconsciência total.



Desconhecendo por que meios foi conduzido à célula de quarentena, quando abriu os olhos já estava deitado dentro dela. Mesmo com a perspectiva de meses de confinamento, sentia legítimo orgulho em poder contribuir com a edificação de uma sociedade mais segura e saudável, livre de moléstias. Também estava orgulhoso por Eva ter tomado a iniciativa de reportar seu caso às autoridades.  Não temia por sua vida, pois tinha plena confiança na instituição. Pela janela da célula observava o exterior. Via as unidades que paravam em frente à parede flamejante. Embora a estreita janela lhe permitisse um arco visual muito limitado, concluiu que as labaredas seguiam um padrão circular em redor da Sede Governamental, alimentadas, talvez, por um conjunto de válvulas de escape para o metano derivado do lixo soterrado. Passaria vinte e três horas em confinamento diário. A hora fora da célula estava dividida em dois períodos de meia hora. Uma meia hora para almoço e janta, e quinze minutos para cada refeição. A outra meia hora seria para o banho de sol, pois a absorção do cálcio das drogas só era promovida pelo calciferol após exposição à luz solar, segundo as instruções do monitor da célula. De oito em oito horas, uma amostra de sangue lhe seria coletada para avaliar a reação de seu organismo à doença e à medicação.
A adaptação à nova vida foi gradual. As dores de cabeça de que foi acometido no primeiro mês haviam diminuído um pouco, graças à eficiente medicação que recebeu e aos estímulos dos colegas de quarentena.
“Essas cápsulas são o que há de mais avançado em nutrição”, comentou com Ivan um interno, AB M01, em um almoço de sua primeira quinzena de quarentena.
Os internos eram reconhecidos pelo tipo sanguíneo e por uma letra de setor ao lado do número de ordem de chegada. Apesar de estar consciente dos esforços necessários para se curar, nos primeiros dias, Ivan não foi capaz de disfarçar seu mutismo à mesa de refeições, frente à bandejinha de cápsulas coloridas.
“O pessoal que opera na Estratosfera só ingere isso aí...”, observou AB M44, outro interno. “O que sente?”
“Tirando o estômago embrulhado e a dor de cabeça...”
“O monitor neural está se acomodando em seu tálamo. Daqui a alguns dias não sentirá mais nada.”
No decorrer dos dias seguintes, as dores de cabeça desapareceriam por completo.
A maior parte do tempo em que passava a sós na célula de quarentena passava-a deitado. Às vezes levantava da cama, andava de um lado para o outro e olhava para o que a minúscula janela lhe permitia ver do lado de fora. Ocorreu a Ivan que a vida confinada não era tão angustiante. Poderia passar meses ou, talvez, até mesmo anos seguidos nela. Afligia-lhe apenas a possibilidade da integridade física de Eva e Márcio estarem ameaçadas. Mas o fato de estar contribuindo para a segurança da coletividade e a certeza de que contava com o apoio de Eva, onde quer que ela estivesse, lhe dava ânimo. Procurava reforçar consigo a ideia de que a situação por que estava passando era temporária e em nada se assemelhava à atitude de resignação passiva dos Anônimos, desajustados que aceitavam a doença sem fazer questão da conversão, mesmo aptos geneticamente. Subversivos, os Anônimos se retiravam às fazendas de infectados, comunidades que acalentavam a dissolução através do sono eterno, gravitando em torno de um Mestre, um dos raros seres que projetassem algum brilho nos olhos e fosse reconhecido como “feliz”. Na verdade, passavam a maior parte do tempo vagabundeando no meio do mato sob efeito de Super 8. Ivan em nada simpatizava com a ideia de ir para a cama sabendo que, talvez, não acordasse mais. Diferente dos Anônimos para quem viver era indiferente, estava com a maioria, com aqueles que simplesmente aceitavam a melancolia da existência, formavam casais e, se decidissem por bem, pediam autorização para procriar, embora só fosse permitido um filho por casal em função do rígido controle populacional.



Os dias passavam em relativa tranquilidade. Uma noite, no refeitório, Ivan assistiu ao último informe sobre uma nova mutação do vírus:


Em informe oficial, o diretor da SG afirmou que o grupo sanguíneo B positivo é o mais novo grupo vulnerável ao vírus letal. Como afirmou o diretor “[...] análises em hemácias de uma portadora do grupo B positivo revelaram o bloqueio da produção de antígenos pelo vírus”. O diretor não citou o contexto da descoberta, mas há boatos de que um esterilizador do Centro de Compras encontrou lenços de papel encharcados de sangue no sanitário feminino. Imediatamente, ele teria acionado os agentes de plantão que conseguiram rastrear uma mulher ainda no local.
“Ainda não sabemos com segurança se o grupo B negativo poderia estar vulnerável, também. Por via das dúvidas, para garantir a segurança dos demais grupos, selecionaremos alguns indivíduos por amostragem a fim de nos prevenimos. Intensificaremos as medidas profiláticas”, completou o diretor.


À mesa do refeitório, sob o telão, pela primeira vez desde que chegou, Ivan se deu conta de que aquelas palavras haviam saído do prédio em que estava. Em algum aposento da Sede Governamental, a personificação dos nobres valores da sociedade, o diretor, emitira aquele informe. Entretanto, ficou temeroso ante a falta de definição quanto ao grupo de Eva e Márcio, pois cada informe alertava sobre a velocidade crescente das mutações. Quanto ao estado de saúde de Ivan, motivo de preocupação algum se fez presente decorrido o tempo no Centro de Quarentena. Nenhum novo sangramento. Certa manhã, soube que receberia alta em breve, caso seu estado permanecesse estável:
“Vejo que está em bom estado”, observou uma voz através do sistema de áudio da célula de quarentena. Ivan teve a sensação que a conhecia. Através de uma câmera no teto da célula de quarentena, seu aspecto físico era monitorado diariamente.
“Obrigado. Sinto-me orgulhoso em ter correspondido ao tratamento”, respondeu Ivan.
“Também estamos satisfeitos com o teor de suas amostras sanguíneas. Gostaríamos que colaborasse conosco.”
“O que mais posso fazer?”
“O senhor já está ciente de que o tipo B positivo foi incluído no grupo vulnerável ao vírus letal. Uma nova ala será aberta para receber os infectados deste grupo. Devido ao seu passado de serviços à província, estamos lhe dando a oportunidade de integrar o corpo de agentes de saúde neste novo projeto de auxilio aos infectados”.
“Mas eu pertenço ao grupo de risco A negativo.”
“As análises de suas amostras revelaram que seus antígenos não estão atribuídos a nenhum sistema específico, o que lhe torna imune ao vírus letal.”
Por um instante, Ivan se enfronhou num estado de reflexão concentrada. Seu retorno era aguardado fora dali. Com as ondas de mutação ninguém estava seguro... Talvez não os visse nunca mais...
“Ao senhor é dada a chance de colaborar com os esforços para a edificação de uma sociedade cada vez mais segura e livre de moléstias”, tornou a voz.
“Senhor, há alguma previsão ou novidade quanto à vulnerabilidade do grupo B negativo?”, indagou Ivan.
“O grupo B negativo não será incluído no grupo de risco.”
Tais palavras tiveram um profundo efeito tranquilizador no cérebro de Ivan, ainda mais depois que o diretor da Sede Governamental declarou oficialmente, em rede, que os Bs negativos estavam imunes. Agora Ivan estava pronto para atender ao chamado de auxílio do Centro de Saúde. Seria uma honra integrar tão nobre projeto.



Apesar da amplidão da nova ala, em um mês já estava quase lotada. E não somente a masculina, pois do outro lado do CS, nos alojamentos femininos, restavam menos que meia dúzia de células de quarentena desocupadas. Comboios de unidades saiam e retornavam o dia inteiro. Ivan teve que aprender o sistema de trabalho em pleno voo: na prática improvisada do ritmo alucinante dos novos internos que entravam no Centro de Quarentena. Ficou encarregado de auxiliar os trabalhos na estação de recepção, posicionando infectados nas macas robóticas para os estágios preliminares de esterilização. Não encontrava maiores dificuldades nisso, pois todos os recém-chegados obedeciam prontamente às instruções, agilizando o trabalho.
“A A01!”
“Sim senhor!”
“A maca T 33 não responde à chamada, deve estar travada. Vá lá e confira. Aproveite para verificar se as agulhas estão em ordem.”
Ivan correu ao fundo da estação, desviando da multidão até chegar ao estacionamento das unidades. Seguiu em frente e passou por um estágio de esterilização a seco antes de entrar na subestação das macas. Encontrou a T 33 com a antena quebrada, porém, antes de dar meia volta para comunicar o fato ao supervisor, ouviu a pergunta:
“Trocou as agulhas?”
Virou-se para trás a fim de ver quem estava lá, mas não havia ninguém além dele.  Torceu o pescoço avidamente em todas as direções à procura de alguém ou de alguma fonte de áudio ou vídeo.
“Não há fontes de áudio na subestação”. Novamente a voz fez-se presente, mas, desta feita, arrepiado, Ivan a reconheceu como sendo a voz do supervisor, provindo diretamente do interior de sua cabeça.
“Repito: trocou as agulhas?”
“A antena da maca está quebrada”, respondeu a esmo, cético de que alguém fosse lhe ouvir.
“Verifique se há mais alguma avariada e me avise quando voltar”, obteve resposta.
Examinou duas dezenas de macas para encontrar mais duas com as antenas quebradas. Comunicou os danos ao supervisor que respondeu:
“Certo, vou providenciar o concerto. Quanto ao senhor, fará parte da próxima unidade de busca”.



Pensou na possibilidade de avistar Eva e Márcio na rua, mas o itinerário das missões era rigorosamente estabelecido, não admitindo desvios. Ao entrar no núcleo de monitoramento das unidades de busca, viu um enorme monitor com o mapa rodoviário da cidade: cada rua estava ali, com pontos vermelhos relativos às casas dos infectados. Havia outros pontos verdes se movimentando ou parados em frente aos vermelhos, representando as unidades de busca.
“Você é A A01? Venha comigo”, um homem apontou o caminho a Ivan.
Embarcaram num veículo, e Ivan pode reparar nos detalhes da cabine. Não havia portas nem assentos. Motorista e carona ficavam em pé, com as costas apoiadas num espaldar estofado. Além deste ponto de apoio, o motorista tinha o volante, e o carona uma barra no painel frontal. Sobre o painel havia um monitor indicando a rota menos congestionada até o endereço a ser visitado.
“Segure-se firme nas curvas”, alertou o motorista.
Antes de deixar a ilha, tomaram um desvio até o pátio para abastecer o veículo.
“Em que ala você estava?”, perguntou o motorista.
“A01.”
“Foi o primeiro A negativo a ser catalogado... Eu era O, O negativo. Fui convertido para O positivo. E você?”
“Eu o quê?”
“Foi convertido para que tipo sanguíneo?”
“Sou imune.”
“O que fazia antes de ser isolado?”
“Prestava serviço em tribunais.”
“Particular?”
“Para o Conselho.”
“Contribuía para a purificação da sociedade. O que fazia exatamente?”
“Atestava ao Conselho a inadequação social de certos indivíduos.”
O monitor conduziu a dupla de agentes a um grande terreno com uma casa ao fundo. Imediatamente o portão abriu.
“Pegue o scanner e a maleta de medicamentos”, mandou o motorista.
Foram adentrando o pátio da casa. Uma mulher profundamente transtornada veio recebê-los. Conduziu-os aos fundos do terreno, onde um quarto hermeticamente vedado fora improvisado num jardim de inverno. Dentro dele, um garoto deitado tapava o nariz com lenços de papel encharcados de sangue.
“Quando iniciaram os sangramentos?”, perguntou o motorista.
“Há uma semana”, respondeu a mãe em tom embargado, o rosto desfigurado por olheiras e pela testa enrugada de preocupação. Dava a impressão de que não dormia direito há dias.
“Certo. A senhora poderia abrir a porta?”
O garoto sangrava profusamente pelo nariz, respirando com dificuldade pela boca, engasgando eventualmente com o próprio sangue que lhe borrava o queixo branco.
“Ele se recusou a comer este tempo todo”, disse a mãe.
Os agentes removeram o lençol encharcado de sangue de cima do garoto.
"Vou entrar com o veículo no pátio. Acho que ele não tem condições de levantar. Limpe um pouco o sangue do rosto para que ele possa respirar melhor”, instruiu o motorista.
Com cuidado, Ivan virou o garoto de barriga para cima, que tossiu, espargindo sangue no peito do agente, de modo que teve que movê-lo para a posição inicial, deitado de lado. Deveria ter uns dez anos, as sardas saltando do rosto muito branco, como serragem num tanque de leite, tamanha a sua palidez.
“Como está?”, o motorista perguntou ao voltar.
“Não para de sangrar. Está sufocando.”
Olharam para fora e viram a mãe em prantos.
"Como faremos para colocá-lo no traje hermético?”, perguntou Ivan.
O outro agente pensou por um instante... “Ele vai sufocar.”
Depois de alguns momentos de impasse, o motorista abriu uma maleta contendo drogas, preparou uma injeção e aplicou no garoto. Os sangramentos diminuíram em poucos minutos, e a respiração se estabilizou. Vestiram o garoto com o traje e o puseram na maca. Carregaram o garoto de maca pela curta distância entre o quarto improvisado e a unidade, acompanhados pela mãe chorosa que alisava mechas do cabelo ruivo do filho doente. Abriram o compartimento traseiro e acomodaram o doente acoplado ao tubo de respiração.
“Manteremos contato. A senhora poderá acompanhar os progressos dele acessando o monitor”, disse o motorista à mãe desolada.
Ao partirem, deixaram para trás a pobre mãe do garoto. Entretanto, estavam satisfeitos pela repentina estabilização de sua respiração.



Seguindo a rota de volta ao CS, a unidade parou em um cruzamento. A preocupação com o garoto que transportavam deu trégua por um instante. Enquanto Ivan se distraia com os transeuntes que corriam pelas calçadas, um, em especial, lhe chamou à atenção. Alto, magro, pálido, a barba por fazer, destacava-se da multidão por caminhar em um ritmo fora do normal, mais lento que o da maioria. Ao ver a unidade seus olhos saltaram do rosto esquálido, contraiu os ombros, apertou o passo e entrou por uma esquina enquanto os dois agentes o observam atentamente. Ivan e o motorista se entreolharam, ficou claro a ambos que compartilhavam a mesma suspeita. Por coincidência, aquela esquina era a próxima conversão indicada no painel de rotas. Foram se aproximando e chegaram bem perto do indivíduo suspeito, mantendo-se em seu encalço em baixa velocidade. Observado pelas costas, dava a impressão de estar tenso, disfarçando certa inquietação. Cuidava o veículo com o canto do olho enquanto era seguido. Mantinha o punho direito cerrado com firmeza, numa atitude estranha. Angustiado, fungava com vigor para segurar a coriza que o denunciaria. Mas logo foi obrigado a abrir o punho para levá-lo ao nariz, exibindo um tecido manchado de vermelho. Pôs-se a correr, escarrando e cuspindo com vontade toda viscosidade que lhe entupia as narinas. Dobrou numa rua de mão única, contramão para a unidade, mas o motorista parou o veículo, desceu, e saiu no encalço do suspeito. Olhando para trás a fim de avaliar a vantagem de terreno sobre seu perseguidor, o suspeito é barrado num baque por algo na quina da quadra: Ivan fizera a volta e interceptara o fugitivo que caiu com o encontrão. Arfando, o motorista alcança o suspeito caído.  Ergue-o pelo colarinho, mas quando o fixa nos olhos parece ficar surpreso.
“Dê o fora, filho!”, ordena o motorista. Ivan observa atentamente.
O rapaz hesita um instante.
“Vá logo!”, o motorista insiste em tom paternal, e o rapaz sai correndo.
No caminho de volta ao veículo, os dois agentes não trocaram palavra. A situação fora estranha. Ivan fixava o horizonte, procurando disfarçar não perceber o visível transtorno do colega pelo ocorrido. Quando ia embarcar, Ivan nota com estranheza uma fina listra atrás do veículo. Vai até a traseira e para por um instante, olhos arregalados varrendo o chão pela listra que se perde de vista até a última esquina onde haviam dobrado. Não notou a gota que pingou no bico de sua bota antes de abrir as portas do compartimento traseiro, apenas aquelas que espirraram quando pisou no assoalho vermelho dentro dele. Confuso, olhando com avidez para os lados, fixa o garoto inerte, seguindo perplexo o rumo do rio de sangue que dele escorre até a porta, onde está o motorista escorado em prantos.



“Uma, duas horas?... Por quanto tempo mais terei que ficar aqui, parado? E esse lugar... Nenhuma abertura, só luz, luz, luz... Como vim parar aqui? Alguém atrás da unidade, líquido gotejando... Um elevador... Como vim?... O garoto! Ah, pobre garoto. Uma vida perdida sob minha responsabilidade. E tudo por quê? Para mostrar serviço? Nada leve será a punição que me aguarda... Homicídio culposo... Sim, serei acusado. Desleixo e displicência, defeitos antissociais pela falta de tato com a condição alheia. Um tribunal por teleconferência... Pobre menino... Que tremenda falha”.
A perplexidade de Ivan com o fracasso da missão misturava-se à intensa luminosidade da sala onde jazia prostrado na expectativa de horas intermináveis. Ruminava uma mistura de medo e culpa pelo sinistro incidente em sua primeira missão fora do Centro de Saúde.
“Como se sente?”, Ivan fica alerta à voz familiar que inunda o ambiente repentinamente. “Locais familiares estão carregados de associações mentais”, ela continua, “canalizam o pensamento em determinadas direções. Já locais suspensos, como esse em que o senhor se encontra, permitem que aflore o que realmente o identifica, sem influências nem referências espaciais para situá-lo”.
Constrangido, finalmente Ivan reconhece a voz como sendo a mesma do dia em que chegara.
“O que aconteceu hoje à tarde?”, indaga a voz.
Ivan começou a relatar o mais friamente possível o que ocorrera. A voz se manteve silente enquanto o Ivan falava, sem mesmo preencher os longos vazios em que o agente buscava termos mais fidedignos para se expressar.
“Por que não trouxeram o rapaz?” Para Ivan não restou mais dúvidas quanto à onisciência de seus superiores. Estavam a par de tudo relacionado às ações dos agentes.
“Acho que era um Anônimo, senhor”.
“Por que acha?”
“Ele tinha o brilho nos olhos, senhor”.
“O senhor o encarou?”
“Não”.
No silêncio prolongado que julgou ser proposital, Ivan pode avaliar melhor a resposta que dera. Deu-se conta de que, mesmo tendo ficado observando à distância, sabia de alguma forma que a pessoa que haviam perseguido na rua era suspeita.
“Pela reação do motorista, senhor”, continuou Ivan.
“Então não se tratava de um Anônimo”.
Novo silêncio...
“Acho que era um Mestre, senhor”.
“Que a atitude do seu colega não lhe sirva de exemplo. Todos que manifestarem o mínimo sintoma deverão ser trazidos para cá, Anônimos ou não”.
“Mas, senhor, os Anônimos não devem ficar restritos às fazendas?”
“Sim senhor A A01. Mas isso é por conta deles. Nossa função é manter a cidade segura. Não podemos deixar indivíduos infectados transitando entre os cidadãos de bem para contaminá-los.”
Intimamente, Ivan esforçava-se para recuperar alguma questão fugidia a ser esclarecida, transparecendo certa inquietação pela necessidade de argumentar, mas não teve chance.
“Ficou claro, A A01?”
“Sim senhor”, Ivan pensou ter meneado a cabeça em tom afirmativo.



As últimas unidades de quarentena foram preenchidas. Certa paz reinou na estação de recepção. Mesmo assim, todos se mantinham de prontidão para o próximo surto. Nas semanas que se sucederam à morte do garoto, Ivan não viu mais o motorista no CS. Não teve tempo de conjecturar o porquê de sua ausência. Em um lugar com as dimensões da Sede Governamental, onde era comum o remanejamento de funções, ele poderia estar em qualquer lugar.
Com a calmaria, foi convocado a uma reunião para receber instruções de trabalho nas alas de quarentena. Penso que iria integrar o corpo de funcionários voluntários para a nova ala, mas foi escalado para trabalhar na ala AB. Ela seguia o padrão das outras do Centro de Quarentena: um corredor largo, artificialmente iluminado, meticulosamente asseado, ladeado pelas portas das células de quarentena enfileiradas lado a lado. Exatamente duzentas células: ABs positivos de um lado do corredor, ABs negativos do outro. No meio do corredor havia uma subestação dividida em quatro partes: refeitório, sala dos agentes, sala de profilaxia e sala de medicamentos. A sala dos agentes era um refúgio para a reciclagem interior em meio à rotina de trabalho. Ampla e vazia, continha apenas alguns sofás de cor branca, espalhados aqui e ali. As paredes, também brancas, eram vazadas por translúcidos azulados que tingiam a luz que entrava. Nesse ambiente, os agentes passavam os períodos de folga concentrados em silêncio. Contígua à sala dos agentes, ficava uma das dezenas de salas de profilaxia do Centro de Saúde, com duchas e toda espécie de material descartável como agulhas e seringas. A sala de medicamentos ficava ao lado. Dentro dela, farmacêuticos metódicos passavam o dia com o nariz espetado em monitores, registrando quantidades e calculando doses em meio a tambores de cápsulas e pílulas que aguardavam a distribuição. Em um ambiente como o CS, que abrigava centenas, cada qual necessitando de drogas específicas em horários específicos, distribuir o comprimido certo na dosagem certa e no horário certo ao interno certo consistia tarefa árdua e um desafio permanente. Tal tarefa seria quase impossível sem o auxílio de um equipamento especial. Um programa de computador indicava à máquina a necessidade de cada interno. Os farmacêuticos abasteciam tubos de comprimidos e inseriam na máquina. De uma das pontas dela saía uma tripa de plástico seccionada em segmentos contendo as dosagens, etiquetados com o número da célula de quarentena e o horário da administração.
Um dos extremos do corredor era barrado pela porta que dava acesso ao pátio. O abrir e fechar dela seguia horário estabelecido para o banho de sol dos internos. O pátio ficava estrategicamente situado na face sul da Sede Governamental, de acordo com o ponto cardeal de nosso hemisfério que emitia mais luminosidade durante as quatro estações do ano. No extremo oposto do corredor, havia outras duas portas paralelas, feitas de um vidro muito resistente, separadas pela distância de dois metros. Funcionavam alternadamente sob o comando da central de controle do outro lado.  Nunca eram abertas ao mesmo tempo, nem para o trânsito de funcionários. Quem viesse de um dos lados delas era obrigado a se postar em frente à primeira, sendo identificado pela varredura de um scanner no teto. Aberta, ingressava-se no espaço entre portas, a segunda abrindo somente após a primeira ser fechada para se obter ingresso no setor oposto. Esse tipo de porta separava os corredores de quarentena da estação central, um círculo de grande diâmetro a partir do qual divergiam todas as alas num esquema de raios; cada corredor um raio, convergindo na estação central circular. A estação central era o núcleo nervoso do complexo de alas, e a ilha em seu centro o cérebro. A postos na ilha, vinte e quatro horas por dia, a excelência científica de nossa época se alternava em turnos, formando uma equipe multidisciplinar que coordenava e executava os trabalhos de conversão sanguínea. Na equipe figuravam geneticistas, químicos, microcirurgiões, exobiólogos e alguns indivíduos com poderes sugestivos para além da tecnologia. Caso fossemos determinar um símbolo, entre tantos, para o avanço tecnológico de nossa sociedade, a ilha do centro de quarentena seria o ícone perfeito. Na verdade o padrão estrutural do Centro de Quarentena fora inspirado na roda raiada vermelha sobreposta ao fundo azul da bandeira de nossa província. Na estação central, bem em frente às duas portas de cada ala, ficava a mesa de comandos com monitores, local onde um agente controlava as câmeras do interior das células. A abertura e fechamento das células também partiam dela.
Toda a estrutura para conversão sanguínea ficava num andar abaixo do setor de alas de quarentena. Aquele que devesse ser convertido era encaminhado da célula para o corredor e deste para a estação central. Reuniam-se a ele a equipe multidisciplinar seguindo rumo pelo único corredor sem células de quarentena do complexo de alas, o corredor dos elevadores. 



Os internos faziam as refeições em grupos alternados, de acordo com o número de lugares disponíveis no refeitório, contíguo à sala dos agentes. Por motivos de higiene, não havia cozinha: todo o cardápio vinha de fora do CS, em porções previamente embaladas e balanceadas. Logo Ivan reparou que o refeitório não chegava a lotar, pois nem todas as células eram abertas nos horários de refeição. 
“Alguns internos sofrem de inapetência e passam por um processo diferenciado de nutrição”, informou o chefe da ala AB, quando convocou Ivan para auxiliar tal processo.
“Hora da última leva!”, os agentes foram avisados pelo chefe da ala, após o último grupo de internos deixar o refeitório.
Seguiu em marcha pelo corredor uma equipe de vinte agentes, rumo às células de quarentena. Vestindo seus macacões hermeticamente vedados, os agentes foram separados em duplas, distribuídas em frente à porta das células dos que não haviam almoçado ainda.
“Preparem-se!”, partiu do chefe, com quem Ivan formava dupla na ocasião. “Vou dominá-lo. Você coloca a presilha plástica”, o chefe instruiu Ivan. Foi dada a ordem, as portas se abriram. O chão da célula estava alagado, e o vaso sanitário transbordava. O interno investiu imediatamente contra a saída, mas, com um movimento de lado, o corpanzil do chefe barrou o caminho. Empurrado de volta para dentro, o interno escorregou e caiu sentado no piso molhado. Ivan puxou uma presilha antes que pudesse se erguer. De compleição esquálida, o homem tentava lutar, oferecendo resistência de acordo com seu estado debilitado. Entre respingos, finalmente foi imobilizado. Arrastaram-no ao corredor, aguardando as células serem esvaziadas.
Eram dez internos ao todo. Foram encaminhados diretamente à sala de profilaxia da subestação. “Alguém além desse aqui se sujou?”, perguntou o chefe à equipe de agentes, apontando para o interno que tirara da célula. O macacão do interno estava encharcado nas costas. Como fora o único a se sujar, foi encaminhado para uma higienização antes da refeição.
Ivan torceu o registro. Apontou a mangueira na direção do interno, previamente posicionado sentado no chão, de costas para uma quina de parede da sala de profilaxia. Mas ele ainda resistia. Abaixava a cabeça e se atirava no piso para escapar do potente jato d’água. O chefe chegou para ajudar. Colocou o interno na posição inicial, segurou sua cabeça firmemente com as duas mãos e, com os braços bem esticados para não se molhar, a manteve voltada para o jato de alta pressão. “Não tenha pena? É só água. Não podemos correr riscos de contaminação por parasitas”, disse o chefe. O homem tossia e se afogava, mas a água limpou seu rosto. Depois de devidamente seco e esterilizado, os dois o conduziram a uma fileira de macas com correias de couro onde os outros internos aguardavam para serem posicionados. Próximo, havia uma mesa sobre a qual jaziam rolos de sondas, agulhas descartáveis, ampolas e seringas, algumas de bom diâmetro. Porém, faltava uma maca, de modo que tiveram que deixar o interno que limparam sentado numa cadeira.
“Tudo em ordem agora? Podem deitá-los nas macas.”
Sempre em duplas, enquanto um dos agentes procurava deitar e conter os internos que ainda resistiam, o outro apertava bem as correias. Trabalhando com zelo, os agentes cercavam a fileira de macas, prendendo pulsos tornozelos e cabeças bem firmes. Todos imobilizados, a etapa seguinte era a introdução da sonda alimentar.
O chefe deixou Ivan por um instante para auxiliar outra dupla a prender um interno mais agitado. “Fique parado. Ai! Diabos! Quer morrer de inanição?”, bradou o chefe quando o interno lhe mordeu um dedo. “Esse aqui vai dar trabalho. Pegue uma mordaça em cima da mesa”, ordenou a outro agente. Devidamente amordaçado foi fácil começar a introduzir-lhe o tubo pelo nariz. “Peguem as seringas! Distribuam as seringas! AA01! Como ele está?”, Ivan foi perguntado sobre o interno que haviam deixado na cadeira.
“Não opôs grande resistência, senhor.”
“Deixe-o aí e pegue o tambor de nutrição! O quê? Não buscaram ainda? AA01 trate logo de ir busca-lo!” Nem bem Ivan havia terminado a colocação da sonda, soltou a cabeça do interno que pendeu à frente num baque surdo do queixo contra o peito. Voltou logo em seguida, com um balde transbordando de uma ração amarelada na consistência de mingau.
“Iniciem a nutrição! O que há com esse aí?”, perguntou novamente o chefe sobre o interno da cadeira. O homem jazia desfalecido, com os punhos atados para trás. De seu nariz pendia a ponta da sonda, gotejando. O chefe foi até ele, ergueu sua cabeça pelo queixo e a chacoalhou. “Adrenalina nele!” Logo em seguida, o homem já estava bem acordado. Como alegassem ser o mais fraco de todos, seria o primeiro a ser alimentado, e com quantidade dobrada de ração.
Um dos agentes foi encarregado de encher as seringas. Pegava uma da mesa, mergulhava a ponta na ração e puxava o êmbolo até que enchesse bem. Esticava o braço e a entregava a um dos agentes de cada dupla.
Não havendo como imobilizar seu interno por meio de correias como os outros, Ivan procurava manter-lhe a cabeça imóvel para que o chefe o alimentasse. De repente, balançou a cabeça num tranco, respingando a papa amarelada para todos os lados, enquanto se agitava em espasmos. “Vocês não desistem mesmo, hein? AA01, dê um jeito nele!” Ivan enlaçou o interno com uma chave de braço, pressionando de acordo com a sua resistência para mantê-lo o mais imóvel possível. Não houve mais reações bruscas, pois, bem seguro, a ração lhe descia pelo tubo ligado diretamente ao estômago. Enquanto recebia alimento, o homem lacrimejava de olhos fechados.
Todos alimentados, como o balde não estava vazio, as seringas retornaram ao início da fila para uma segunda porção, enquanto a primeira ia assentando nos estômagos.
“Prefiro salvar-lhes a vida a deixá-los morrer. Em nossa ala ninguém morre de inanição”, completou o chefe.



Na manhã seguinte, A A01 foi escalado para auxiliar no banho de sol. Conduziu alguns internos pelo corredor até o pátio, onde já havia outros. 
“Ora se não é o frenólogo do Conselho!... Saudações. Mundo pequeno, hein.” 
A A01 se virou e viu um homem sentado no chão, escorado à parede, encarando-lhe. Não o reconheceu de pronto. Tão pouco ficou surpreso, pois em anos de trabalho havia lidado com centenas daquela espécie. Também não respondeu, pois era praxe evitar assuntos supérfluos com internos. Permaneceu olhando friamente para o desconhecido, procurando algum sinal que o identificasse pelo crime. Insatisfeito, foi até ele e lhe torceu o pulso. O que viu atestou sua suspeita: uma cicatriz no antebraço, na posição do chip. A implantação do chip subcutâneo baniu o uso de papel moeda, cartões de crédito e documentos de identificação, reduzindo o número de assaltos, mas, na banda desajustada da sociedade, havia indivíduos violentos ao ponto de realizarem sequestros relâmpagos com o intuito de transplantar chips. A extração de chips tornou-se crime corrente. Feita de forma primitiva, consistia em rasgar a própria pele para arrancá-lo com os mais variados fins. O mais frequente era aquele em que o criminoso sequestrava alguém muito abastado para arrancar-lhe o chip e transplantá-lo em si próprio. A partir daí, o raptor deixava a vítima escondida por algum tempo ou a matava, passando a usufruir de seus créditos enquanto o chip roubado não fosse bloqueado. Menos frequente, porém mais perversa, era a pratica de amputar o braço inteiro da vítima. Consistia tal crime infração multíplice de sequestro, falsidade ideológica e roubo. 
A A01 Não recordava exatamente o grau de periculosidade daquele indivíduo, mas não era dos extremos. Os mais violentos eram cremados imediatamente após os julgamentos. 
“Não se lembra de mim?”, continuou o homem, do solo. “Fui acusado de tirar o chip depois de ser preso numa batida enquanto caminhava pela rua.” 
“Todos aderem de bom grado às melhorias tecnológicas, mas há quem não consiga viver em sociedade”, observou A A01, tentando desestimular moralmente o condenado. 
“Não fiz mal a ninguém. Apenas eliminei a possibilidade de ser rastreado.” 
“Porque quer evitar ser rastreado, não soa idôneo.” 
“Não há nada como a sensação de ir onde quer que seja sem precisar desabotoar a camisa ou arregaçar a manga para dar satisfação às máquinas.” “O que o senhor chama de “satisfação às máquinas”, existe em prol da segurança pública”. 
“E os primeiros Anônimos? Onde estava a segurança deles? Só porque disseram não à conversão? Por que não foram encontrados se estavam todos devidamente chipados?”. O homem fez referência aos primeiros Anônimos. Há algum tempo, bem no início da epidemia, quando a conversão se tornou lei, alguns indivíduos aptos que recusaram tratamento foram isolados e desapareceram de uma hora para outra. 
“A conversão é lei para os infectados que optarem por viver em qualquer lugar que não seja nas fazendas ou bem distante do meio urbano. Se encontrarmos algum perambulando nos limites internos da cidade, faremos de tudo para preservarmos sua vida.” 
“É o caso dos que fazem greve de fome?” 
Estas palavras tiveram um profundo efeito no cérebro de AA01. Por um instante, teve que disfarçar o constrangimento pela lembrança dos procedimentos alimentares que auxiliara no dia anterior. Ficara meio confuso desde então. Certa insistência crítica quanto os métodos usados na ocasião começava a perturbá-lo. Disfarçou o incômodo e reagiu conforme a condição de autoridade que o título de agente de saúde lhe conferia: 
“Seja como for, prefiro salvar a vida de um homem a deixá-lo morrer de inanição.” 
“Realmente, os agentes são bem zelosos! Mas onde fica a liberdade de escolha daqueles seres-humanos?” 
“Aquelas pessoas precisam de cura.” 
O interno fixou o muro do pátio por um instante, avaliando o que responder. 
“Compreendo seu idealismo e dedicação à sociedade, mas o senhor realmente acredita que a tutela da Sede Governamental e de seu braço, o Centro de Saúde, existe em função de curar a população? Será que realmente existe esse tal de vírus letal? E se existir, de onde veio? O tratamento contra ele é eficaz? Pode-se confiar no CS?”. 
A expressão facial de A A01 desenhou-se como a de quem ouve um disparate. Então se deu conta de que seus pensamentos certamente estavam sendo acompanhados; não era adequado manter tal tipo de conversa com um interno. 
“Há muitas vozes em nossas cabeças”, continuou o interno ao perceber a agitação de A A01. “Apesar de terem colocado um chip dentro delas, existe uma forma de burlar esse censor onipresente. Para quem está consciente não há a necessidade de autoafirmação, de ficar racionalizando a repressão do sistema. Você é vigiado por aquilo que fica matutando, aquilo que reforça neuroticamente. Adquira uma postura de neutralidade, se torne uma testemunha frente a seus pensamentos e fique invisível ao chip neural. E não tenha medo de ficar como uma folha ao vento, pois se deixar de pensar por um minuto em seus deveres e ignorar aquilo que foi condicionado a pensar, uma voz sutil estará ali, lhe indicando a hora certa de agir e realizar. Essa voz não vem da mente, Ela não pode ser captada pelos sensores dos censores”. 
Nesse instante, alguma coisa esbarrou no ombro de A A01. 
“Saia da frente!”. Um grupo de agentes ergueu bruscamente o interno. “Vire-se! Rosto colado na parede!”, ordenou o líder do grupo enquanto lhe atava os punhos. Era uma batida. Um agente rasgou o macacão do interno na altura da pelve, enquanto outro calçava luvas de borracha. Este extraiu um pequeno cilindro metálico escondido no ânus do interno. 
“O que é isto?”, indagou o agente. 
“Tecnologia de retaguarda.” 
O cilindro foi borrifado com um spray esterilizante. Rosqueou-se a tampa, a ponta de um rolinho de papel apareceu. O agente abriu o papelzinho para ver o que era e constatou que havia algo escrito. 
“Esse tipo de material não é permitido no Centro de Quarentena. Além do mais com esse tipo de atitude anti-higiênica.” 
“Sei que não, por isso escondi lá”, observou o interno em tom sarcástico. 
“A A01, pegue o material, traduza o que está escrito e faça uma cópia. Depois jogue o original no incinerador da sala de profilaxia.” 
Enquanto conduzia o material a ser destruído, A A01 leu o conteúdo do papel: 


Mens sana in corpore sano 

orandum est ut sit mens sana in corpore sano. 
fortem posce animum mortis terrore carentem, 
qui spatium uitae extremum inter munera ponat 
naturae, qui ferre queat quoscumque labores, 
nesciat irasci, cupiat nihil et potiores 
Herculis aerumnas credat saeuosque labores 
et uenere et cenis et pluma Sardanapalli. 
monstro quod ipse tibi possis dare; semita certe 
tranquillae per uirtutem patet unica uitae. 

Decimus Iunius Iuvenalis 


Mente sã em corpo são 

Deve-se pedir em oração que a mente seja sã num corpo são. 
Peça uma alma corajosa que careça do temor da morte, 
que ponha a longevidade em último lugar entre as bênçãos da natureza, 
que suporte qualquer tipo de labores, 
desconheça a ira, nada cobice e creia mais 
nos labores selvagens de Hércules do que 
nas satisfações, nos banquetes e camas de plumas de um rei oriental. 
Revelarei aquilo que podes dar a ti próprio; 
Certamente, o único caminho de uma vida tranquila passa pela virtude.





Enquanto aguardava há algum tempo, Ivan havia ficado entregue aos próprios pensamentos, como de costume.
“Como vai o senhor?”, ele ouve a voz.
“Bem, senhor.”
“Foram captadas oscilações anômalas em seus processos mentais. Gostaríamos de deixá-lo a par”.
“Algo grave, senhor?”
“Como o senhor já deve ter reparado, a política de prevenção da SG, em quaisquer setores de sua alçada, é regida pela agilidade. O monitoramento de seu fluxo mental acusou vibrações de dúvida por volta de determinada data. Tem algo a dizer a respeito, senhor A A01?”
Ciente de que andara envolvido, involuntariamente, com questões de crítica acerca dos procedimentos profiláticos, Ivan esquiva-se com uma explicação:
“Senhor, estive em conversa com um dos internos, alguém que examinei há algum tempo no tribunal do Conselho. É um sujeito subversivo. Verbalizou um monte de disparates, aos quais reagi. Também traduzi material proibido que fora apreendido com ele na ocasião de nossa conversa.”
“Mesmo assim, o monitoramento não mente. Temos identificado as oscilações de suas ondas cerebrais no padrão da dúvida. O senhor afirma que o interno em questão seja subversivo. Caso tenha surgido algum questionamento de sua parte sobre o que ele dissera, é sinal de que o senhor não o ignorou totalmente... Esse tipo de afetação provocada por internos em um agente não tem cabimento nas atividades desse centro.”
Pego de surpresa, Ivan se vê encurralado, mas procura afirmar sua lealdade à instituição:
“Sim senhor, elementos subversivos são um ameaça tão grande à sociedade quanto a epidemia. Suas teorias não têm sentido. E minhas reações de dúvida provêm dos absurdos que sou obrigado a ouvir desses desajustados que estamos tentando curar”, diz em tom de austeridade.
Momento de silêncio. Ivan resiste petrificado em sua expressão de seriedade, na expectativa da resposta.
“Muito bem, senhor A A01. Retorne à sua ala.”




As conversões sanguíneas seguiam. Na ala AB o clima era de normalidade. A maioria dos internos reagia bem à remodelação de fator sanguíneo, podendo voltar à vida normal em pouco tempo. Havia aqueles cujos organismos não aceitavam prontamente a conversão, mas nada que não fosse ajustado com a ingestão de drogas. O acesso ao complexo de conversão do nível inferior era restrito, mas o que escutara da equipe de médicos ao longo dos meses em que conduziu internos pelo curto trajeto entre a estação central e aporta do elevador, deu a Ivan certa noção dos procedimentos de conversão.
A conversão consistia, basicamente, em extrair uma célula da medula óssea. Uma nova avaliação de antígenos era feita para atestar o fator sanguíneo do indivíduo. Em seguida, buscava-se no cromossomo número 9 a sede o lócus ABO para reprogramar a atividade das glicosiltransferases. A reprogramação era feita em curto prazo, mas a forma de execução é o elo do processo reservado ao conhecimento dos especialistas. Circulavam rumores de que era feita a partir de frequências vibratórias. Também existia a necessidade de se manipular o gene relativo à transmissão de informações mediante a reprodução celular para que a célula não fosse rejeitada depois de reinserida, mas que influenciasse a mutação de todas as células que sofressem influência direta e indireta do tipo sanguíneo do indivíduo a ser convertido.
Alguns indivíduos não respondiam bem à conversão, variando os casos entre aqueles que necessitavam de mais tempo, os que só podiam manter a conversão pela ingestão permanente de drogas variadas, e os raros casos de morte.



A vida clama pela vida, pela manutenção e reprodução de si. O instinto de sobrevivência é a força motriz do universo.


Assim iniciou a redação do discurso que proferia uma vez por mês em rede, ocasião solene em que todos paravam o que estivessem fazendo para ouvir o pronunciamento, fosse no trabalho, nas escolas ou na rua.
Avaliando o que escrevera, o diretor da Sede Governamental ficou satisfeito com a forma como iniciara. Tinha em mente que um bom discurso deveria ser abrangente. Ninguém de intelecto mediano, muito menos um governante poderia ignorar a relação entre política, ciência e espiritualidade. Tudo estava fundido. Continuou a escrever:


No passado, a admiração que o diamante despertava se devia ao fato de ser produto de milhões de anos de processos naturais. Mas, hoje, somos capazes de produzi-lo numa ínfima fração do tempo de que a natureza necessitaria. Devido a tanto, à transcendência do fator tempo nessa equação, o diamante natural perdeu boa parte do seu encanto. Não há mais como se gabar de possuir um baseado na aura numinosa conferida pelo deus Tempo. Mas o produto da engenharia genética é diferente. A vida humana não será desvalorizada, pois o instinto de sobrevivência a acompanhará eternamente, e a Moral se acomodará a ele, assim como os conceitos de existência e divindade.
Já houve época em que os homens viviam imersos em terror perpétuo, fruto de crenças difusas sobre sua origem e destino; a existência era algo absurdo. Tal conjunto de crenças recebia o nome de “Religião” e assolou o mundo por dezenas de séculos. A Religião se fundamentava em dogmas, um deles a “fé cega”, criando uma incompatibilidade com um mundo em evolução, em busca de respostas concretas para os questionamentos essenciais. Naquele tempo, Religião e Ciência estavam apartadas. Formavam uma bifurcação conflitante que ignorava seu tronco comum. Não se atentava à verdade de que as duas são complementares: a Religião tinha razão até o ponto em que afirmava que a origem do homem se devia a uma entidade inteligente: o homem foi criado. A razão da Ciência estava em questionar os moldes de “entidade inteligente” pregada pela Religião, além de procurar entender os meios usados para originar a vida. E o tempo passou... A evolução científica trouxe a possibilidade da criação de clones humanos, trouxe o dom de co-criação ao homem. Nesse estágio de capacidade criativa, a ideia de que a humanidade talvez também fosse fruto de uma raça cientificamente superior deixou de soar tão absurda. Em decorrência disso, a afirmação religiosa de que o homem fora criado por uma entidade inteligente passou a fazer sentido, e a questão crucial para a Ciência passou a ser “quem seria essa entidade ou raça cientificamente superior”. Iniciava a convergência entre Ciência e Religião e a derivação de novas práticas científicas mais integras.
A anos-luz de qualquer babel de conceitos, nossa época é de síntese. Houve mudança naquilo que a Religião pregava; ou melhor, na forma como pregava. Seus dogmas ruíram. O conceito “Todo Poderoso” foi transmutado. Outrora, ele dizia respeito não apenas à entidade que havia criado terra, céu e mar, mas também engendrado a raça humana. Mas num vasto universo, onde o conjunto da obra se perpetua pela obra numa escala de avanço científico, não nutrimos mais a ilusão de sermos intervenção direta da Entidade Suprema, de onde tudo emana, inclusive nossos próprios criadores diretos. Estes, muito embora possuidores de um nível de sofisticação científica superior na moldagem da argila sonora, ao ponto de nos aperfeiçoarem a partir de símios que vagavam pela Terra, também são obra Dele, do sempiterno, que não teve princípio nem há de ter fim e habita o inacessível a conceitos humanos. “Incognoscível” é um de seus nomes. O Deus supremo, todo poderoso, permanece como entidade incognoscível que, há éons inconcebíveis, fez concessão do poder co-criativo que Dele emanou, cobrando apenas os “royalties” de retidão moral taxados pelos mensageiros que eventualmente nos envia.
Quanto a nós, não somos mais simples reprodutores. Somos co-criadores! Co-criadores de nós mesmos através da inteligência, para além da mera reprodução biológica. Isso é evolução! Os meios eficientes para a clonagem humana já nos são banais. Sabemos, hoje, que nossa raça foi projetada com o intuito de povoar este planeta.
Agradecemos a nossos criadores que, em eras pretéritas, para além do limo dos oceanos e do pó dos desertos, empreenderam o investimento nesse canto esquecido da galáxia, e asseguramos que não os decepcionaremos como as raças dos projetos anteriores, que, temos notícias, foram expulsas do Jardim que habitavam por sua degenerescência moral.



Em pé, lado a lado, a dupla de oficiais perscrutava o céu noturno sobre o acampamento no deserto. Num ponto bem afastado da linha das baterias de obuses. De costas para o clarão dos disparos intermitentes, vislumbravam a negra vastidão celeste, cravejada de incontáveis pontos brilhantes.
Fora os meteoritos, procuravam distinguir qualquer coisa que tivesse brilho e se movimentasse. Nas altas camadas da atmosfera, estava em curso a batalha decisiva pelo controle da rede cibernética de satélites e drones. Tornara-se hábito entre oficiais e soldados rastrear o céu noturno em busca de pequenas explosões.
“Viu alguma coisa?”, perguntou o tenente de pelotão blindado, Dmitrich.
“Ainda não”, respondeu Ivanovitch, tenente de infantaria.
“Veja!”, Dmitrich, aponta para o céu. “Viu?”
“Vi. Apagou.”
“Será que foi um X-37B?”
“Certamente. Estamos vencendo lá em cima.”
“Toda aquela parafernália lá em cima e nós aqui, na base do canhão”, observou Dmitrich. “Se estamos vencendo, por que não despejamos nossos mísseis da Exosfera aqui também? Nem que seja para errar o alvo como aconteceu com o inimigo no Mar Amarelo.”
“Na verdade, não foi erro do inimigo. Seus mísseis rumavam precisamente para Beijing. Mas o aliado conseguiu inutiliza-los antes que entrassem no espaço aéreo do continente, bem acima do Mar Amarelo”, diz Ivanovitch.
“Não sei como você consegue parar em pé! Está com febre, ainda?”, Dimitrich muda de assunto, falando sobre o estado de saúde do colega.
Ivanovitch meneou a cabeça em tom positivo:
“Com a tensão da proximidade da batalha não sinto tanto. O pior são as cólicas... Não sei quanto tempo vou durar aqui. Quero apenas ir lá e ser bem-sucedido.”
Os canhões retumbavam noite adentro. O clarão dos projéteis lançados iluminava os rostos dos artilheiros. De seus ouvidos escorriam fios vermelhos de sangue, tamanho o estrondo das baterias que cuspiam obuses para macerar as distantes defesas inimigas num prelúdio ao ataque da aurora.
Ao alvorecer, Dimitrich e Ivanovitch avançam com seus pelotões. Na ponta-de-lança fundiam-se companhias de infantaria e blindadas. Não há um exército inimigo explícito no horizonte, apenas a promessa de milícias guerrilheiras infiltradas em vilas e cidadezinhas, segundo o alto comando. A certa altura do caminho, uma ordem via rádio faz com que os pelotões desviem em direção a um vilarejo.
Trabalhando em pequenas plantações na periferia da vila, alguns homens e mulheres observam com estranheza uma nuvem de poeira incomum crescendo no horizonte. Os pelotões se aproximam e, a uns duzentos metros da periferia, param. O contorno de homens armados e tanques de guerra se define claramente para os habitantes. A perplexidade inicial dá lugar ao pavor, e as pessoas começam a correr para dentro da vila. A fuga atiça a sanha da artilharia que começa a disparar em direção a elas.
"Cessar fogo! Cessar fogo!”, grita Dmitrich, saindo da torre de um tanque.
Enquanto isso, o rádio do tanque se agita: “O que está acontecendo aí?”.
“Não encontramos resistência”, informa o tenente Dimitrich ao capitão do pelotão blindado em algum outro ponto do vasto deserto.
“Chegaram à vila? Ótimo, prossigam em frente! Tomem a vila!”, ordena o capitão pelo rádio.
Mal termina de falar com o capitão, Dimitrich ouve mais disparos de fuzil.
"Cessar fogo! Cessar fogo!”, grita enlouquecido e pula da ponte do tanque em cima de um soldado da infantaria.
“Recebemos ordens de chegar atirando”, diz o soldado.
“Minha mulher está grávida, farei qualquer coisa que me mandarem”, arremata o soldado.
“Cessar fogo!”
Cessam os disparos, mas, dessa vez, a ordem veio do líder da infantaria, Ivanovitch, que caminha até o tanque de Dimitrich.
O que está havendo aqui, tenente? Recebemos ordens para varrer a área. Por que não está disparando seus canhões?”
Munido de binóculo, o tenente Dmitrich dá uma boa olhada para além dos muros, enxergando apenas um esvoaçar colorido de barras de vestidos, serpenteando em disparada pelas ruelas para o interior da vila.
“Vamos mandar batedores. Não sabemos se há rebeldes na vila”, diz Dimitrich.
“Bem colocado, ‘não sabemos’, tenente”, diz Ivanovitch.
“Não vou sacrificar meus homens para ter certeza.”
“O que está acontecendo aí?”, o rádio chama novamente.
Dmitrich volta ao rádio expor seu ponto de vista ao capitão do pelotão blindado, que não o deixa concluir.
“Limpe a área, tenente!”
“Mas, senhor...”
“Repito, limpe a área! Não desobedeça, tenente!”
Enquanto Ivanovitch orienta seus soldados a reiniciarem os disparos contra tudo que respire ou faça sombra, Dmitrich, a contragosto, dá ordens para que os quatro tanques do pelotão se posicionem em arco e mirem nas casas. Os tiros de canhão começam. Os poderosos projéteis abrem claros entre as humildes moradias, levantando poeira e fumaça. Surgem incêndios e gritos por toda a parte. Os soldados a pé abatem qualquer coisa que saia da vila tentando escapar do inferno de chamas, ou se insinue em seu campo de visão, sejam mulheres, crianças ou mesmo animais. Em troca, recebem meia dúzia de disparos de revide.
Depois de meia hora de disparos intermitentes dos pelotões, o tenente Ivanovitch incita seus homens a entrarem na vila:
“Entrem com tudo!”
Os soldados enxameiam pelas ruelas tomadas de escombros. Por todo lado há destruição: pessoas agonizando em possas de sangue, sem parte dos membros, sufocadas no meio de escombros. Bem na entrada, encontram um velho ferido, recostado a uma parede, agarrado a um fuzil enferrujado. Tenta erguer a arma contra o primeiro soldado que vê entrando, mas é fuzilado no peito.
O cheiro de pele queimada é terrível, mas os soldados ensandecidos correm penetrando mais fundo na vila. Um garoto chorando no meio do caminho é atropelado. O soldado que vem atrás o arremessa para o lado com uma coronhada na cabeça, e o que vem em seguida lhe pisa o peito brutalmente, quebrando seu esterno. Uma porta é arrombada. Mulheres e meninas aparecem encolhidas a um canto, atrás de tulhas de grãos. Desesperada, uma grávida levanta para tentar escapar, mas recebe um tiro que explode seu abdômen. As meninas têm as roupas arrancadas num frenesi de violência. Um tanque transita pela rua principal do vilarejo, mirando nas poucas habitações que permaneceram de pé.
À sua frente, seguem Ivanovitch e seus quatro melhores assassinos, desfigurados pela insânia. O tenente dá instruções para executarem os que ficaram presos nos escombros. Guiados por choro, lamentações e gemidos de desespero, os soldados sobem pelos escombros a procura de bolsões que abriguem sobreviventes. Ao ouvirem qualquer murmúrio sob as botas, caso as frestas dos bolsões sejam estreitas demais para mirar os fuzis, enfiam granadas de fragmentação por elas.
Terminada a limpeza, espalham herbicida nas plantações e ateiam fogo a tudo que pegue.
“O que está acontecendo aí?!”
“Tomamos a vila, capitão.”
“Alguma baixa?”
“Sem baixas, senhor.”
“Parabéns, tenente! Vou indicar seu nome e o de Ivanovitch para a condecoração.” 



Por algum tempo teve que adiar o pretendia fazer. Entretanto, tal atitude não condizia com sua natureza. Em outras ocasiões, sobretudo naquelas que envolvessem decisões urgentes sobre posições inimigas, o general Wei sempre optou pelo avanço contínuo, sem retiradas. Não fora por falta de tempo que deixara de escrever as últimas páginas de seu diário de guerra, pois o armistício já havia dispensado os estrategas dos campos de batalha, naquele que fora o último conflito de proporções mundiais. Embora tivesse muito a relatar, queria que a chave-de-ouro de seu registro pessoal fosse uma síntese formidável acerca do deslocamento do eixo geopolítico mundial, coroado com o triunfo do bloco que defendera. Mas, no momento, não havia ambiente adequado para tal. Seria preciso refúgio para executar seu intento. Algo que às cerimônias de comemoração e entrega de medalhas, bem como à atmosfera de histeria patriótica que grassava nas ruas era incompatível. Esperaria a hora certa. Tal síntese seria como uma florescência nascida da sedimentação de recordações que a cada dia lhe voltavam à mente sobre as preliminares, o desenrolar, e o desfecho da guerra. Dia-a-dia, ruminava o rumo dos acontecimentos das últimas décadas: a fragmentação da aparentemente invencível potência ocidental, alianças, batalhas, reveses, retiradas das tropas invasoras que há anos vinham cercando seu país e vizinhos.
Embora o inimigo representasse desafio hercúleo, nunca duvidara da vitória. Vez por outra, ainda degustava a sensação de otimismo que desde o início lhe acompanhara, resquício duma fogueira de inefável convicção acerca do bom sucesso, acendida em seu íntimo com a declaração de guerra oficial. Desde a convocação, Wei sentiu-se como que destinado a uma espécie de missão divina previamente estabelecida. Só precisava fazer sua parte na reconfiguração política do globo que estava em vias de acontecer. Após décadas de recolhimento havia chegado a vez de sua nação. Os ventos da prosperidade soprando a favor de seu país. O que parecia impossível no jogo de poder internacional aconteceu. O mundo havia mudado. O rumo inexorável da História riu das tentativas dos que tentaram barra-lo. Nem sequer puderam atrasá-lo. Foi fulminante.
Pouco tempo depois, numa silenciosa tarde de inverno, fez-se o ensejo. No jardim de inverno de sua propriedade, Wei jazia sentado atrás de maciça escrivaninha de madeira. Pela janela, contemplava o padrão monocromático do exterior: tudo muito branco pela neve acumulada. Nem mesmo o branco sujo do céu nublado assemelhava-se ao caos cromático do campo de batalha, e o sabor do puro malte que sorvia tinha a suavidade de um néctar divino. Sozinho, ali, à parte do mundo, ninguém lhe via, ele não via nada. Para lhe guiar, senão a luz duma luminária pousada sobre a mesa, juntamente com o velho diário. As últimas páginas permaneciam em branco, prontas a receberem tinta. Wei puxou a luminária mais para perto, abriu bem o livro... Em amplo floreio ensaiou a primeira palavra. Tomou um gole. Parou um instante com a caneta suspensa sobre a flor do papel, perscrutando o esboço duma síntese. Abstraiu um marco inicial, um intermediário e um final como arcabouço de preenchimento dos fatos. Pôs-se a escrever:



Anos antes da guerra, o país inimigo entrara em decadência. Após algumas décadas de prosperidade e soberania sobre praticamente todo o globo, mergulhou em profunda crise econômica e no caos social.
Assim ocorreu devido à perda paulatina do controle de que dispunha sua elite sobre o comércio mundial, e a perda do valor de sua moeda, outrora a moeda que regia as transações comerciais estratégicas da Terra. Entretanto, num ponto continuava hegemônico: em sua máquina de guerra. Décadas de investimentos massivos e desenvolvimento em tecnologias complexas o equiparam com um arsenal formidável, incluindo diversas frotas navais capazes de levar a destruição da noite para o dia a qualquer canto da Terra. Dada a crise econômica, urgiu a tomada de uma atitude, só lhe restando jogar com as cartas de que dispunha, o que se revelaria demasiadamente custoso para o mundo. Restaram à potência em crise os pobres Estados do globo com alguma fonte de riqueza mineral. Sob os pretextos mais absurdos, passou a abusar de seu poderio bélico, tomando territórios a bel-prazer. No início, fiou-se em um mínimo de razões para legitimar as ocupações. Mais tarde, porém, passou a agir descaradamente, ficando evidente seu intuito de pilhagem. Uma a uma, as nações mais frágeis foram absorvidas. Por via da lealdade forçada, passaram a gravitar num bloco aglutinado pela coerção, cujos recursos das regiões relevantes eram geridos militarmente a partir de fortalezas muradas. O resto, o que ficasse extramuros, não passava de bantustões e vítimas para queimar com a assistência zelosa das elites regionais caídas de joelhos: lacaios submissos que não hesitavam em assassinar compatriotas conforme a conveniência do ocupante.
Apenas duas nações poderiam barrar tal agenda expansionista. Uma delas éramos nós, pela tradição como potência militar e prosperidade econômica que nos colocava em vias de liderar o globo. A outra era nosso vizinho fronteiriço que, embora passasse por um período de re-estruturação econômica, ainda preservava bom estoque de armamentos dotados de enorme poder destrutivo, gênios científicos e uma numerosa população para sacrificar se fosse o caso. O fato de sermos nações vizinhas, tacitamente formando um maciço bloco regional, sendo a agressão a uma tomada como ameaça à outra, constituía um agravante para o inimigo potencial. No período anterior ao conflito, ainda mantínhamos importante comércio com o agressor. As visitas de seus secretários de estado eram frequentes, bem como oportunas, pois visavam obter a garantia de que continuaríamos comprando seus Títulos do Tesouro. Na verdade, éramos seu maior credor. Entretanto, havia uma diferença entre os modos como gerenciávamos nossos recursos. Enquanto ele se enredava cada vez mais no mundo abstrato da especulação financeira, despejando dinheiro num poço sem fundo, estávamos mais preocupados com o mundo concreto. Enquanto a infraestrutura dele envelhecia, investíamos pesado na nossa. Não nos importávamos em receber até mesmo grãos em troca dos títulos que tínhamos guardado. O que seria de um país sem alimentos? Mas, apesar dos negócios, em comum, nunca nos iludíramos a respeito dele. Permanecíamos atentos as suas táticas de desestabilização política de países inteiros por meio do suborno e financiamento de grupos compatriotas rivais caso detectasse tensões e as perspectivas de lucro fossem promissoras. Nunca havíamos entrado em combate direto com seus exércitos, mas permanecíamos atentos ao posicionamento de suas bases pelo mundo a fora, as quais ultrapassavam mil unidades. E quando chegou mais perto com uma de suas frotas, ocupando a porção austral do continente, constituída por estados mais frágeis, não ficamos surpresos. Tal movimento vinha num pacote de posicionamentos militares estratégicos na tentativa de se fortalecerem para nos fazer frente. Havia em curso um plano de nos cercar em longo prazo. O paradoxo para eles é que dependiam justamente de quem ameaçava sua hegemonia. Independente da supremacia militar, as coisas se mostrariam difíceis ao invasor, já no início. Apesar da disparidade bélica entre ele e os fracos países do sul, teve que lidar com uma tenaz resistência de guerrilheiros nativos determinados a expulsá-lo, fato que causou uma enxurrada de baixas em suas linhas. Às famílias dos jovens mutilados e aos aviões cargueiros abarrotados de sacos negros que retornavam diariamente a seus aeroportos militares, contendo os corpos catalogados nas baixas fatais, cada novo presidente seu respondia com mais investimentos maciços em defesa. Canalizavam preciosos recursos para o empreendimento de guerra num continente distante, enquanto a população local era contemplada com migalhas e cortes nos serviços públicos. Enquanto apenas o povo mais pobre padecesse pelo descaso de seus governantes ou servisse de carne para canhão, embalado no transe de grandiosidade patriótica, as coisas permaneceriam relativamente pacatas. Mas, em breve, a gente de certa posse sentir-se-ia espoliada, e o senso patriótico passaria a soar como engodo. Daí em diante o cenário político interno do invasor entraria em parafuso: passaria a experimentar em casa o que perpetrara pelo mundo ao longo de sua História.
No contexto de nossas relações econômicas, certa feita, seus federais nos ofereceram um acordo em segredo. A proposta nos concedia a opção para aplicar a desapropriação de bens dentro de seu território como garantia para que continuássemos lhes emprestando dinheiro. Isso significava que, na eventualidade de seu governo precisar honrar obrigações financeiras conosco, teríamos permissão para tomarmos fisicamente terras e prédios em seu território. Quando a casta abastada no comando dos estados se deu conta, boa parte de seus territórios já estava empenhada pelo governo federal. O tempo passou e, a certa altura, o inevitável aconteceu: tornaram-se incapazes de saudarem parte das dividas. Iniciaram as desapropriações, poder que o governo tem de tomar propriedade privada para uso público sem o consentimento do proprietário legal. Pela sua constituição, o governo só poderia desapropriar se provesse uma indenização, cujo valor ele próprio decidiria. Uma torrente de processos judiciais inundou os tribunais, movidos por proprietários que se sentiram mal indenizados. Entretanto, em todos os casos, as cortes mantiveram o valor original definido pela propriedade.
Em vários estados formaram-se grupos de cidadãos ressentidos em torno da perda e mau pagamento de suas propriedades. Na sequência das desapropriações, nos anos seguintes, recebemos o estado do Havaí inteiro para quitar parte substancial da dívida. Mas, embora ambos os lados procurassem manter as negociações em discreto, os termos reais da troca de mãos da ilha não passaram despercebidos. Foi mais um duro golpe no senso de segurança daquela nação. As lideranças regionais, sempre preocupadas, não podiam deixar de imaginarem quando chegaria a vez de seus estados. A perda de um Estado inteiro também afetou o brio patriótico da população. Foi o marco traumático da perda de fé no governo federal, até então símbolo da unidade em prol dos interesses da nação. Ficou claro ao povo que os federais não passavam de representantes de interesses de uma elite global que desprezava nacionalidades. Somando tudo ao fato de ser um povo armado, foi só uma questão de tempo para a eclosão do pandemônio.
No turbilhão de revolta crescente, tentando reviver os áureos tempos de soberania nacional, surgiram partidos políticos para arrebanhar a massa desiludida. Imantavam militantes nostálgicos dos tempos de paixão patriótica, pregando um discurso de “patriotismo racional”. Não mais o patriotismo cego do passado, mas um patriotismo justificável em termos reais de soberania nacional e integridade “wasp”. Prometiam trabalhar para recuperar a gerência do país perdida aos estrangeiros. Sobretudo no sul, composto por estados de tradição rebelde, os partidos dessa linha ideológica abrigavam alas ultrarradicais que treinavam milícias armadas em fazendas. Também havia partidos que defendiam a negociação conosco, expondo o fato da constituição multirracial da sociedade vir de longa data. A ala mais radical desses partidos estava alinhada com os federais, apoiando o uso da força em eventuais desapropriações de terra. Outros propunham a defesa de interesses regionais, independente dos negociadores sermos nós ou seus federais. A densa nuvem negra que pairava sobre aquela sociedade precipitar-se-ia certo dia, num episódio que marcaria o início de uma guerra civil.
Ficara acordado entre nossos governos que certa cidadezinha decadente do sul de seu território nos seria entregue como pagamento. Na época, ambos sentíamos a necessidade de expandirmos nossas áreas de depósito de materiais indesejáveis do ponto de vista ambiental, vindo a calhar tal localidade. Um megacomplexo seria construído como destino para todo tipo de refugo contaminado por metais pesados, vírus, bactérias e radioatividade, incluindo cadáveres de animais e humanos. Os termos da entrega da cidade previam que, depois de um ano sob nossa responsabilidade, o governo federal local também poderia usá-la com as mesmas finalidades. Sob a suave pressão de promessas de privilégios, o estado que a abrigava cedeu a cidade, negando-se, porém, a mobilizar forças locais em caso de necessidade de expulsões, o que ficaria a cargo dos federais. Uma data limite foi marcada para a cidade ser esvaziada, e, meses antes, iniciaram-se os trâmites de praxe para compensar os moradores. Todavia, umas seis ou sete famílias optaram por partir até o prazo determinado. Uma nova data foi fixada, mas, desta feita, com avisos ostensivos insinuando aos moradores que o uso de força era uma alternativa em caso de permanência. Nesse ínterim, uma numerosa força-tarefa sob o comando da Polícia Federal foi mobilizada e um plano de desocupação traçado. Faltando um dia para expirar o prazo, apenas mais uma dezena de famílias aceitara os termos de desapropriação.
Certa madrugada, os federais adentraram a cidade adormecida, seguidos por frotas de ônibus vazios. Os moradores seriam realocados em campos de concentração da Agência Federal de Administração de Crises (AFAC). Os agentes passavam de porta em porta com uma ordem de despejo a ser assinada pelo morador. Alguns, anciões, principalmente, cediam impotentes. Outros trancavam as portas apenas para serem derrubadas, sendo arrancados de casa aos gritos e lágrimas da família.
Havia um par de horas em que os federais haviam adentrado a cidade nos trabalhos de remoção, enfrentando o mesmo tipo de reação desesperada, quando o primeiro estampido irrompeu no ar. Caia o primeiro agente. Mais disparos seguiram-se à fuga dos federais pelas ruas. Enquanto alguns se escondiam atrás de troncos de árvores, esquivando-se da mira de francoatiradores alhures, os que ficavam expostos eram abatidos. Embora houvessem cogitado certa resistência, os federais subestimaram o grau de intensidade dela. Foi quando surgiu a necessidade da Guarda Nacional e de lotes de caixões da AFAC, parte para os agentes mortos, e uma parte ainda maior para os moradores que viriam a ser assassinados no decorrer da tomada da cidade. Até então, o alerta fora para a existência de francoatiradores. Mas, à medida que a Guarda Nacional avançava pelas ruas, ficou evidente a presença de um grupo bem organizado infiltrado no local. Munido de armas automáticas, praticava táticas de guerrilha, emboscando e recuando.
A repercussão foi imediata, consternando as populações vizinhas que tinham negócios e familiares na cidade atacada. Revivendo o pesadelo da destruição de suas cidades pelo implacável norte ─ desta feita a massacrar o povo em benéfico de estrangeiros ─, uniu-se o sul. Milícias voluntárias de toda região compareceram para apoiar a resistência. Em seguida, o movimento se estendeu às lideranças militares locais. Vários estados se rebelaram oficialmente contra o governo central, oficializando um movimento armado de guerra civil nomeado de “Segunda Guerra de Secessão”. O conflito interno da nação inimiga estender-se-ia por alguns anos. As tropas federais até que tentaram restituir à Federação os estados rebeldes, enquanto as desapropriações eram transferidas para a Costa Oeste sem maiores resistências.
Atolado em diversas frentes de batalha no exterior e numa infeliz disputa fratricida, o inimigo tornou-se um pilar de sal. Concomitante à guerra civil seguiram as desapropriações a passos largos na Costa Oeste. Os estados do sul se separaram da federação formando uma república independente. O resultado final foi a fragmentação da antiga potência hegemônica em repúblicas formadas pela união de estados sob influência de outros países ou continentes.
A República da Califórnia ficou sob nossa influência. 



Aguardavam o início do julgamento. Perfilados, lado a lado, num patamar superior, jaziam os membros do Conselho divisando a área circular logo abaixo, em cujo centro ficava a velha cadeira à espera de um novo réu. Escoltado por dois guardas, entra o acusado no recinto, a cabeça previamente raspada para o exame. Os guardas atam seus pulsos à cadeira com espaldar para cabeça enquanto o frenologista é aguardado para o veredicto suplementar. Todo criminoso era julgado pelos guardiões do corpo de leis, o Conselho de Anciões. Dado o veredicto inicial, seguia-se um exame anatômico do crânio do réu para atestar em termos de características relacionadas às regiões cerebrais as causas de seu desajuste social. Ao lado da cadeira há uma pequena mesa com um envelope de papel contendo a acusação e o veredicto da etapa inicial do julgamento, o qual só será aberto após a conclusão do exame, evitando induzir o examinador. As portas principais do recinto se abrem. Um homem uniformizado entra e anuncia em tom solene: 
“O senhor Ivan Ivanovitch Iejov”. 
Entra o frenologista acompanhado de um auxiliar. Este toma conta das preliminares sedando o réu via intravenosa. Um silêncio abissal desce sobre o recinto, todos os presentes profundamente concentrados no exame. O frenólogo faz um gesto com a mão, e o auxiliar aciona um controle remoto que eleva a cadeira, deixando a cabeça pendida do réu desacordado bem na linha da visão de Ivanovitch. “Está iniciado o exame”, proclama Ivanovitch. Numa análise prévia, circula vagarosamente em torno da cadeira, visualizando demoradamente as proporções do crânio do réu. Por duas vezes se dirige brevemente ao auxiliar para indicar apontamentos que este registra numa planilha. Em seguida, se aproxima e inicia a segunda etapa, medindo com uma fita métrica distâncias e proporções do crânio. Por último, vem a etapa do tato. Com a ponta dos dedos percorre o couro cabeludo do acusado, procurando saliências e reentrâncias. À medida que segue com o exame, sugere novos apontamentos ao auxiliar. 
“O exame está concluído”, anuncia Ivanovitch, de repente. 
Em seguida, inicia o relato de suas conclusões ao Conselho: 
“O exame inicial, de perfil, expôs claramente o caráter do réu. Observem os senhores a testa curtíssima deste indivíduo”, Ivanovich delineia com o indicador a parte frontal da cabeça do homem. “Reparem na base da testa, na linha das sobrancelhas, há uma saliência bem definida e protuberante de onde segue uma linha praticamente reta até o topo da cabeça. Agora, observem a queda abrupta desta linha, passando pela parte traseira do crânio diretamente ao pescoço, sem a mínima saliência de entremeio; sua nuca é praticamente achatada. Concluo que tais proporções, grosso modo, assemelham-se às de um triângulo retângulo. Baseado nisto, em relação à aguda protuberância na base da pequena testa, afirmo que o réu possui uma considerável hipertrofia num dos pontos relativos às faculdades intelectuais, no caso, naquele correspondente à individualidade que, juntamente à atrofia na porção intermediária entre a testa e o topo da cabeça, local da faculdade moral da benevolência, soma-se à nuca achatada, evidencia de atrofia afetiva. O conjunto de tais características, individualidade extrema e ausência de benevolência e afetividade, denunciam um indivíduo extremamente autocentrado.” 
Enquanto faz uma pausa para as informações sedimentarem na assistência, Ivanovitch circula em torno da cadeira, mãos para trás, olhar atravessando o chão. 
“Na segunda e terceira etapas”, reinicia o relato, “etapas do exame através do tato da superfície do crânio e da coleta de suas medidas, o que chama à atenção, imediatamente, é a relação entre largura e altura nas proporções do réu com sutis protuberâncias acima das orelhas que, inicialmente, passariam despercebidas, mas que um exame minucioso é capaz de revelar ao tato”. Segurando a ponta da orelha dobrada com uma das mãos, o examinador aponta com o dedo da outra a área exposta, observando ser a zona da periculosidade. Em seguida, Ivanovich ensaia algumas hipóteses sobre o tipo de delito do acusado: 
“Devido à soma dos fatores evidenciados nesse exame, concluo tratar-se de um indivíduo frio e egoísta, débil, também, pois a única área do grupo das faculdades energéticas que se destaca é a da periculosidade. Certamente trata-se de alguém cujo elã gira em torno de conflitos, e, portanto, não tem o mínimo freio em perpetrar desarmonia em derredor. Alguém assim, certamente, sente-se desconfortável em ambientes civilizados. Se até esse momento não havia chegado a nós, foi em função de esforços terríveis para conter-se. Em última análise, mesmo que se disciplinasse, seria apenas uma questão de tempo para que chegasse a esta cadeira, pois mais cedo ou mais tarde sua agressividade viria à tona em algum rompante, defeito perigoso indissociável de sua natureza. O mínimo que posso afirmar, é tratar-se o delito em questão de agressividade motivada por interesses egoístas, seja agressão gratuita ou por frustração, furto ou latrocínio.” Ivanovitch recebe permissão do Conselho para abrir o envelope com a acusação, constatando tratar-se de caso de agressão. O homem havia matado a noiva por espancamento. Enquanto isso, o auxiliar aplica nova injeção para que o réu acorde antes do veredicto. 
Um representante do Conselho proclama o veredicto:


Não ficando dúvidas acerca da natureza do réu, após duas sessões de julgamento, uma baseada na legislação deste Conselho, outra em provas científicas acerca de sua constituição física e psíquica, proclamamos que o mesmo será removido do corpo social. 
Após deixar esse tribunal, até antes da meia-noite, o réu não estará mais entre nós. Será induzido ao sono profundo antes de ser cremado. 
Observamos que a natureza violenta de suas ações representa agravante que lhe tira o direito de indução a qualquer sonho antes do sono profundo, devendo o condenado passar da vigília diretamente ao sono profundo como forma de punição. 
Essas são nossas palavras.



“Muito alto! alto demais; não me acostumei ainda; é fácil subir à altura do topo de um prédio, para isso não falta ímpeto; pernas bem juntas, braços colados ao corpo, e, como um míssil, arremeto de cabeça na vertical; mas o problema é permanecer lá, suspenso, olhando a distância incomum que separa o corpo do chão; o medo é real, e também abstém de alçar voos mais altos; e as pessoas lá embaixo, paradas, apontando; não que em baixa altitude não fiquem observando, mas é mais confortável a sete palmos do chão; fico tão leve, como se estivesse mergulhado n’água, braços esticados, mãos espalmadas, os impulsiono para trás e me cuspo à frente; vá lavar as mãos! as dançarinas devem estar ensaiando... vou até lá, a porta fica aberta pra rua... tem um cara tocando flauta, o conheço, não sabia que fazia isso... deixa pra lá; aquele cara em pé no meio da praça fumando charuto... que dia é hoje? em plena terça com aquele ar de satisfação, parado, como se a existência fosse uma festa; parece alguém que conheço, mas num outro tempo ou num universo paralelo; você saiu do banheiro, vá lavar as mãos! irritante, sempre me observando, e a pele de meus dedos enrugando; alto demais, agora, mais alto que aquela palmeira, o ar arrefece de repente, os dedos me apontando... só um sonho, um sonho; nada mais seguro que este colchão onde estou deitado, nada mais limpo, esterilizado, enfadonho... só torna mais aguda essa sensação de impotência, de nada poder contra o mundo da decomposição; longe daqui vermes chafurdam na podridão, fungos entranham-se em troncos podres, e rios subterrâneos de dejetos seguem seus cursos alheios a ignomínia e ao desprezo humanos, sem se preocuparem em reivindicar à nós uma parte da natureza que julgamos ser nossa e para nós; o que posso fazer além de chorar? essa latrina vai ficar muito rasa! cave mais fundo! depois tampe o buraco para não atrair moscas, já temos moscas demais no acampamento; moscas, milhares delas, enxames de insetos ávidos de refugo humano, da carne podre, carne para canhão; sim senhor, capitão! que fim melhor poderia ter um garoto infeliz, apenas mais um numa geração de garotos infelizes num país decadente... não se contentam com a carne podre, querem nossa ração também (podre, também, é verdade); milhares de moscas dançando com as patas imundas na ração, trazendo de volta todo excremento de que julgamos estar livres; não se contentam com a ração, também querem nosso sangue no café da manhã... não bastasse o inimigo; é verdade, a disenteria me tirou de combate, mas saímos vitoriosos; o sacrifício de nossa geração valeu à pena, removemos os últimos obstáculos à Nova Ordem; será um século sob nossa batuta... Não, não pode ser! Nem o campo de batalha e sua podridão, nem os micro-organismos puderam me levar, como é que os levam agora, daqui, da segurança dessa redoma! se tivesse uma arma...”




Do dia para a noite houve outra mutação que investiu fatalmente contra o grupo sanguíneo B negativo, causando várias mortes, inclusive a de Eva e Márcio. A família de Ivan foi cremada no Centro de Saúde, dissolvida, talvez, no mesmo incinerador onde os corpos dos condenados que passaram por seu exame foram reduzidos a cinzas. Naquele momento, parado ali, em frente ao incinerador, com o suor a lhe escorrer da testa, disfarçando duas ou três lágrimas de um choro que retinha com esforço para não irromper convulso, finalmente compreendeu o poder purificador do fogo para além da abstração da letra fria das sentenças de execução proferidas nas salas climatizadas dos tribunais. 
A cinzas também se reduziu seu ânimo, mas sem purificação, sem catarse... Nenhuma forma de higienização jamais poderia dar cabo da nódoa na alma de Ivan. Tornou-se outro, seu comportamento evidenciando a mudança. Na rotina de trabalho, quando não estava em estado catatônico, travado numa inércia absurda, estava envolvido em atritos. Alheio a qualquer senso de conveniência, começou a envolver-se em questiúnculas com outros agentes sobre o sistema de trabalho. Questionava abertamente os colegas a respeito daquilo que julgava contraditório entre as exigências de higienização e alguns procedimentos envolvendo internos, redarguindo às advertências dos superiores. Mas, dentre todos os problemas de que foi acometido depois de perder a família, o mais pungente dizia respeito à eclosão de seu passado de guerra sob a forma de trauma psicológico. Fantasmas em forma de imagens que outrora lhe eram indiferentes ou não figuravam em suas memórias, começaram a lhe assaltar. Via e ouvia de tudo, desde labaredas gigantes em forma de faces demoníacas se refestelando com o cheiro da pólvora queimada do campo de batalha, a coisas mais terríveis que lhe maceravam deveras o coração, fazendo-o sentir-se como um verme miserável. Entre elas havia o choro de bebês. Um deles, em especial, lhe perseguia o dia inteiro, e, nas poucas horas de sono fragmentado que conseguia conciliar durante a madrugada, sonhava com ele, constatando desesperado em prantos ser Márcio em chamas quando bebê. 
Seu estado mental tornou-se óbvio via monitoramento neural, de modo que passou por alguns aconselhamentos e advertências. Por fim, foi considerado inapto para qualquer função e afastado do trabalho.




Entre o labirinto de caminhos que vazavam a sólida massa do prédio, havia um largo corredor no topo, diverso dos demais pela gravidade e suntuosidade. Convenientemente posicionado num dos três últimos andares da Sede Governamental reservados à diretoria, ficava no patamar intermediário entre o primeiro dos andares e a cobertura. Diferente das outras dependências da S.G., seu aparato tecnológico de acesso restrito integrava-se de forma sutil ao ambiente na forma de sensores de massa corpórea. O estilo da decoração causava a quem descesse do elevador a impressão de que estivesse regressando alguns séculos no tempo. O piso de raro tabuão escuro, sólido como pedra, perfeitamente assentado, era ladeado por paredes também de madeira, um pouco mais clara, sem deixar de ser nobre, também. O brilho que refletiam evidenciava o tratamento a que foram submetidas a fim de durarem ad eternum. Em determinados pontos das paredes jaziam pinturas, obras de arte à altura do raro material de onde pendiam. Seguindo pelo corredor, chegava-se a uma ampla sala muito iluminada pela luz natural que jorrava através dos altos janelões encaixados com a permissão do enorme pé-direito. Atapetada de persa, tinha as paredes de mogno decoradas com enormes painéis representando batalhas, entre elas a de Poitiers e Austerlitz. Esta última, sempre motivo de comentários e polêmica para alguns visitantes mais nacionalistas com pretensões historiadoras. 
Num extremo da sala, perto de uma lareira ladeada por generoso estoque de achas aromáticas, jazia uma pesada escrivaninha, sólida como monólito. Assentados em seus extremos, frente a frente, dois homens conversavam. Um deles, o diretor da S.G., ostentava ombros cravejados de estrelas. O outro, um executivo do ramo de laboratórios, envergava excelente terno. Visualizavam Austerlitz. 
“Só você mesmo, Wei”, disse o executivo em tom resignado ao diretor. 
“Fiz questão desse painel.” 
“Creio que alguns não concordaram de todo.” 
“Certamente não, e não me interessa em que parte do todo não concordaram.” 
“Mas, e nós? Não se esqueça de que você está em nosso país”, advertiu o executivo. 
“Não se trata de ‘nós’, ‘eles’ ou ‘vocês’. Trata-se do teatro da guerra, independente dos atores. Se foram vocês, russos, vítimas de má sorte naquele episódio, isso é secundário. A mim importa ter sido um tempo em que havia honradez no ato da guerra”, explicou Wei. 
“Honra? Como se os franceses fossem bondosos. Honrado era o cossaco que enfiasse a baioneta em algum francês adormecido”, disse o executivo. 
“Encare do próprio jeito. Mas, seja como for, era um tipo de confronto franco, homem a homem. Hoje as máquinas fazem todo o serviço. Meu ofício tornou-se insosso.” 
Os dois levantam. Muito devagar caminharam até um janelão. A partir das vidraças, vislumbrava-se a vastidão azul manchada por uma penugem de nuvem que vagava solitária ao longe. O sol pleno permitia divisar um horizonte longínquo, há quilômetros e quilômetros além da ilha. 
“Creio que esteja ciente do motivo de sua presença aqui”, observa o diretor, abrindo um baldinho de gelo para servir-se de uísque. 
O executivo acende um charuto e pergunta: 
“Algum pedido especial fora as drogas e medicamentos habituais?” 
“Resolvi chamá-lo pessoalmente para que entendesse a gravidade da situação. Vê toda aquela placidez azul?”, com um copo na mão, Wei aponta o céu com o queixo. “Em breve ela vai se transfigurar num pesadelo cinzento. Uma nuvem incomum se encaminha para cá. Poderá estar sobre nossas cabeças em poucos dias. Há duas horas fui informado de que um reator nuclear explodiu mil quilômetros a leste daqui, certamente por obra de resquícios do armamento inimigo no Supremo Terreno Elevado. A nuvem está se alastrando depressa. Nossos meteorologistas advertiram da possibilidade dela se precipitar sob a forma de chuva radioativa em toda a região. Temos que descartar esse risco. 
“Mais iodeto de prata...”, concluiu o executivo. 
“Será necessário uma quantidade extra, desta vez. Aviões-Spray já estão em prontidão para serem carregados. Espargirão o iodeto na nuvem para estimular a precipitação do conteúdo radioativo bem longe daqui. Quando for embora acione imediatamente o transporte do produto para a base aérea sem alarde”, ordenou Wei. 
“Em que região cairá a chuva?”, perguntou o executivo. 
“Em algum local do interior. Tem parentes no interior?” 
A dupla circula lentamente pelo salão. 
“Como estão?”, pergunta o executivo quando chegam à beira de uma escada no fundo da sala. 
“Cuido bem delas.” 
“E elas correspondem?” 
“Tenho que admitir: são ótimas.” 
Os dois sobem a escada, até outra sala no andar superior. Muito mais modesta em dimensões, não deixa de ter atributos incomuns. Menos iluminada, difere, sobretudo, na decoração minimalista, enxuta e monocromática. Mergulhada numa tênue luz avermelhada, evoca uma atmosfera de sonho. A presença dos dois é notada, e uma fileira de belos rostos sorridentes torce o pescoço na direção deles. Sobre uma mesa estendem-se lado a lado três cabeças de mulher, demonstrando imensa empolgação pela presença de Wei. Sorriem mostrando uma dentição perfeita, diferindo entre si pelas feições e pela cor dos cabelos, negro, ruivo e loiro. 
O general se aproxima da mesa, afaga os cabelos da ruiva, curvando-se para beijar-lhe o rosto. Diante disso, a cabeça de mulher reage assumindo feições de extremo prazer. 
“Sempre simpáticas e solícitas”, observa o executivo. 
“Temos novidades”, diz Wei com ar de satisfação. 
Ambos se dirigem a uma sala contígua. 
“Esta é a última.” 
“Incrível, é linda!”, admira-se o executivo. “Só a pélvis já é um grande feito!”, observa fitando com avidez uma criatura do sexo feminino formada apenas de pélvis, pescoço e cabeça unidos com perfeição. “Que pele perfeita!” 
“Ao invés de refugá-la optei por tentar aperfeiçoá-la dentro de suas próprias características físicas. É o resultado bem-sucedido de experiências genéticas malsucedidas.” 
“Parabéns. Você transcendeu bem e mal nestas questões.” 
“A composição do sangue é balanceada com os nutrientes certos. Também se instalou uma bomba mais compacta para distribuí-los. Os pelos foram suprimidos. Só cabelos crescem.” 
“Fala?” 
“Sim, mas está em estado silencioso.” 
“Emoções?...” 
“Sim, de acordo com um programa. Programas específicos de personalidade estão em desenvolvimento. Em breve elas estarão no mercado, juntamente com os programas conforme a preferência do comprador. Você poderá ter a mulher que desejar para lhe satisfazer. Grosso modo, conversar com uma intelectual numa hora, ou com uma medíocre na outra, ou simplesmente mantê-la muda. As possibilidades são infinitas. Vai depender do número de programas que possuir.”



Esses insetos... Apenas insetos. Ficam pra lá e pra cá carregando pedaços de folhas. Pra quê? Para que servem? Existir ou não, qual a diferença se não têm consciência de si próprios e do mundo em torno? A existência não requer consciência. Num momento, vivos, no minuto seguinte, esmagados... Que sentido tem a vida se se perde a consciência e se deixa de existir? Qual o sentido da vigília se quando se adormece profundamente não se tem consciência de nada? Qual o laço entre consciência e inconsciência, entre existência e não existência? Que valor tem a existência sem referências perpétuas acerca dela?... É, realmente, só existe o estado de sonho. A morte é sono, e a vida, nos momentos de vigília não passa de um sonho, também. Somos como formigas. A única diferença é que tentamos dar sentido a vida, subjetivamente, ou objetivamente, mas a vida pela vida, a existência pela existência não tem sentido, só há desilusão. Existir e não existir dá no mesmo.
Agachado junto a um formigueiro na entrada da fazenda, Ivan avaliava sua existência até aquele momento. De uma hora para outra começou a perambular pela província. Dormia até tarde, levantava e saía de casa passando o dia inteiro fora. Começou a percorrer as áreas que anteriormente evitava, aquelas suspeitas fora dos limites da cidade onde pairava a pecha de subversão. Sabia que a trilha levaria a uma comunidade de Anônimos e seguiu caminho por ela devagar, como se estivesse caminhando num parque. Alguns cães apareceram, ladrando fanfarrões, mas inofensivos, e a um estalar de dedos já estavam abanando os rabos, cativos. Uma dupla de rapazes passou por ele indiferente, como se estivesse invisível. Viu uma mulher segurando um balde atravessar alguns metros à frente para desaparecer no mato da beira da estrada. Seguiu adiante: um chalé de madeira caindo aos pedaços, uma pilha de lenha, mais cães. Cães de todo tipo (todos vira-latas), sarnentos, filhotes, guenzos, rengos, de cara branca, pelos longos e curtos. Espaço não faltava para tantos animais. Parou um instante, olhou em redor protegendo a visão do sol com a mão espalmada em cima dos olhos, e avistou numa colina alguns chapéus de palha agachados numa horta...
Embora chamadas de “fazendas”, a comunidade se assemelhava mais a um sítio. Não havia nenhuma espécie de criação de animais para abate, apenas hortas. Existiam apenas alguns galinheiros espalhados, pois embora todos optassem por não comer carne de espécie ovos eram permitidos. 
Aos poucos Ivan foi se integrando no dia a dia da comunidade. Logo que chegou, ninguém lhe perguntou nada ou veio lhe cobrar apresentações. Era uma manhã quente. Com sede e fome, ao primeiro que encontrou, um homem baixo e atarracado com uma bandana na cabeça, perguntou onde poderia conseguir água e comida. Estava justamente em frente a um galpão que servia de refeitório. O homem gritou para uma janela em cima do galpão se a comida já estava pronta. “Acho que vai demorar”, respondeu e foi embora.
Ivan deu a volta no refeitório. A parede da parte de trás, toda envidraçada, tinha uma porta. Em frente a ela, uma escada de três degraus dava para um patamar inferior coberto de lajes, onde duas mulheres de vestidos estavam conversando, sentadas num muro baixo. Uma delas, de vestido verde, arrancava ervas daninhas da beirada do muro. Na verdade, toda a superfície de lajes estava tomada pelo mato. Quando as viu, Ivan chegou próximo.
“Olá”, disse esperando receber boas vindas.
A de vestido verde torceu o pescoço na direção dele.
“Olá”, foi tudo que disse.
“Posso ajudá-las?”
“Pode.”
Foi ao muro do outro lado, se agachou e começou a arrancar algumas ervas. Atrás de si, ouvia as mulheres conversando baixo algo que não entendia. Vez por outra, a de vestido verde agarrava displicentemente um caule suculento e o puxava. Logo as duas se levantaram e saíram sem dizer palavra. Subiram as escadas e desapareceram atrás do galpão.
No final da manhã, a testa pingando de suor, restava apenas um par de ervas que Ivan não arrancara por compaixão. A de vestido verde apareceu nas escadas segurando uma pá de corte:
“Se você quiser pode raspar o limo das lajes.”
“Como é o seu nome?”, perguntou a ela.
“Irínia.”





...