domingo, 24 de agosto de 2014



A heroína do vagão



Achei uma mesa ao lado do janelão no quarto andar, o quarto de cinco andares repletos de estantes de livros. A vista até que é razoável: a cobertura de concreto armado da universidade encimada por uma massa verde de árvores até o horizonte de onde brota o topo de um edifício. Bem diferente do estreito horizonte ondulante pelas ondas de convecção que brotam do asfalto abrasador nesse dia de verão em pleno agosto, aqui no paralelo trinta graus sul. Embora inspiradora, a vista é o de menos. O mais importante é que aqui é tranquilo. Descobri que as bibliotecas das universidades são verdadeiros oásis de tranquilidade em meio à correria urbana. Olho para os livros placidamente ordenados lado a lado nesse ambiente climatizado, silencioso e acarpetado e me sinto feliz pela vida que têm. Tudo estaria perfeito se não fosse o click de um mouse noutra mesa... Não um click lá, outro acolá, mas um frenesi ininterrupto de clicks tal qual uma rajada deles.
Até pensei em trazer um computador para escrever, mas é um trambolho que incomoda carregar. Hoje era dia de sair de mãos livres. Por isso peguei um pequeno caderno velho e uma caneta para enfiar nos bolsos da calça. Também tive que enfiar um livro de bolso para negociar no sebo e poder estar aqui, pois tinha apenas metade da ida e volta de trem. Então saí pelas ruas da cidade com aquele volume nas calças, como se tivesse acabado de sair de uma clínica de implantes de próteses nos glúteos.
Ao sair de casa, ao parar para a travessar a rua, tive que esperar um tempo além do meu pavio até todos os carros passassem. Sentia-me meio esquisito. Pensei em tomar a primeira esquina em direção ao centro, mas tomei outra mais adiante para  evitar que alguns vizinhos me vissem. Em direção ao centro, era como se todos em toda parte estivessem me observando: de dentro das casas, nas calçadas, nos carros que passavam, até cães e gatos. Ocorreu-me a possibilidade de rejeitarem o livro, o que me obrigaria a dar meia volta e retornar para as quatro paredes do meu quarto. Mas estava em boas condições, era um autor cultuado... Também era o meu último livro para negociar. Já tive mais livros; a maioria foi vendida em tempos de crise. Restaram apenas alguns de que não pretendo me separar, livros sobre a arte da ficção e uma novela chamada Amoka melhor coisa que já foi escrita, em minha opinião.
Não gostava quando tinha que parar para esperar os carros passarem. Era um alívio quando conseguia chegar ao outro lado da rua de uma vez. Também não queria contato visual com ninguém. Quando via um grupo de garotos bem à frente, atravessava com a maior satisfação... As ruas e praças daqui estão cheias deles; é a cidade das turmas de garotos. Mas quando passei por uma lancheria, onde raramente comia, logo adiante vinha o atendente pela calçada. Pensei em passar sem fazer contato visual, mas mudei de ideia. Cumprimentos.
Bem, cá estou nesse depósito de conhecimento, graças à venda de um livro que prometia pelo autor e título, mas que não me prendeu além da vigésima página. Uma garota na mesa da frente encontrou um conhecido noutra mesa. Levantou, trocaram beijos e conversam... Também me encontro aqui por causa de outro livro. Ao contrário daquele deixado no sebo, esse li sessenta páginas de uma vez na primeira noite em que o abri. Também me inspirou a escrever, e, antes de mim, a Anaïs Nin, que escreveu um prefácio incrível em certa edição. 
Pensava sobre isso na estação enquanto esperava a lagarta de metal acinzentada. Foi uma espera longa, de quase quatro décadas, até que o trem chegasse a essa cidade, uma cidade a cinquenta quilômetros de POA. Aliás, esses cinquenta quilômetros, com sua dúzia de estações, são a extensão total de trilhos para transporte público em um Estado inteiro, e param às vinte e três horas. Quando penso nisso, lembro das cidades europeias, como Praga, por exemplo, uma cidade do leste europeu parada no tempo, mas cujo trem funciona vinte e quatro horas, há mais de um século. E se lembro de uma cidade como Hamburgo, com sua rede de metrô ramificada pelos bairros, sinto saudades do que não vivi. 
Dentro de todo vagão existe uma placa afixada na parede com o nome do fabricante japonês e a sugestiva data de fabricação: “1984″. Um número bem apropriado, pois evoca o universo orwelliano de retrocesso social, o que exemplifica muito bem o abismo de infraestrutura urbana em que vive a gente daqui. Imagino que o povo de onde veio esses vagões deva estar andando em algo similar à naves atualmente. Mas o pior é o que vejo ao longo da linha do trem: ilhas de miséria e casebres; na melhor das hipóteses, conjuntos habitacionais deprimentes com telhado "Brasilit", frutos do programa de habitação pública desse país. Quanto melhor é a qualidade do que você enxerga na rua, melhor é seu bem estar e vontade, melhor é sua mentalidade, civismo, sentimento de identidade coletiva… Mas isso não é interessante pra eles. Deve nos ser negado...
Agora só ando de trem, porque é bem mais barato, confortável e rápido do que o transporte rodoviário. Também porque nos últimos tempos tenho andado meio solitário. Às vezes faço viagens apenas pelo contato humano que os vagões oferecem. Estar na companhia de desconhecidos sem trocar palavra já é o suficiente. 
Tudo muito tranquilo, a lagarta de metal seguia seu rumo até parar na primeira estação. Uma mulher entra com um garoto literalmente pendurado pelo braço. "Eu gastei dinheiro com isso pra você perder!", grita e sacode a criança que segura um DVD que quase deixara cair no vão entre a plataforma e o vagão na hora de embarcar. Está possessa. Esbraveja e sacode o menino como um boneco de pano. Ele não se contém mais e desata o choro que até então segurava. Ela o ergue com vigor e o atira no colo deitado... Os dois silenciam... A mãe fita o vazio com o semblante contorcido. O menino jaz em seus braços com dois riscos de lágrimas secas nas bochecha, olhando a capa do DVD. Ambos entorpecidos num paradoxal abraço dolorosamente agradável.
Sempre há interações num vagão em movimento, de olhares à hora de dar lugar a alguém... Esse último é bom porque você simplesmente cansa de ficar sentado o tempo inteiro e só fica aguardando a hora de ceder lugar. Eu já estava com a bunda quadrada quando comecei a cuidar sempre que a porta se abria nas estações para ver se não entrava algum idoso, grávida ou alguém com bebê de colo... Duas estações e nada... Até que na próxima entrou um velho bem magro, camisa desabotoada no peito, barba branca e chapéu de palha. "O senhor pode sentar aqui", fui levantando. "Muito obrigado pela gentileza".
Que alívio... Agora estava em pé, escorado numa das portas laterais. Uma garota entra e divide a porta comigo. Notei o choro de uma criança pequena no outro extremo do vagão, mas evitei olhar, mantendo o rosto pra frente. Também notei que a garota ao lado prontamente tirou alguma coisa da bolsa. Interpretei o gesto como o abrir de um livro, "será que é um livro?". Com a cabeça fixa, torci bem o olhar para o lado dela; era um livro, grosso, páginas amareladas. "Sobre o que seria? Só preciso de uma palavra". Resolvi dar uma olhada na direção do choro. Era um menino pequeno sentado nos joelhos de uma mulher afundada no banco com ar exausto, apenas segurando as mãos da criança que gritava de verdade. Aquele choro tomou conta do vagão, o vagão era só aquele choro. Na hora de voltar a cabeça para frente aproveitei e dei uma olhada de relance no livro da garota, mas só pesquei alguns emes e artigos... 
Achei que o choro fosse dar trégua durante a viagem. Quatro estações e nada. Alguns já davam sinais de desconforto e viravam para olhar com reprovação na direção do berreiro... 
Reparei em uma adolescente loira de olhos verdes e pele bem clara sentada de lado num banco, conversando com um carinha em pé. Entre eles, um outro rapaz sentado ao lado dela... Quando percebeu que eu a olhava, começou a brincar com uma mecha de cabelo do rapaz ao lado. "Namorado", pensei... O vagão estava toleravelmente cheio. Um gordinho de cabelo crespo estava com um gordinha de camiseta branca e barriguinha de fora. "É no balanço da rede, é no balanço do mar...", cantava o gordinho. A loira de olhos verdes conseguia conversar com o carinha e retribuir meus olhares ao mesmo tempo. Ela era a única entre eles que notava minha presença ali; para o resto do grupo em não existia. Enquanto uma nova estação se aproximava, o carinha começa a se despedir da loira. Uma garota de cabelo preto se levanta para descer junto com ele. Aquele grupo que eu havia tomado por tês, de repente, revelou-se quatro. Eu não havia reparado na de cabelo preto. O gordinho abre uma lata de cerveja, "é no balanço da rede, é no balanço do mar, que eu vou plantar uma semente, erva doce da paz", canta se equilibrando com a lata no vagão. A gordinha fica meio sem jeito. A garota de cabelo preto o aponta para o grupo com uma risadinha.
"Unhéérr, Unhéérr, Unhéérrrrrrrr"... 
"Vamos lá mulheres... Sei que vocês sabem como acalmar uma criança". De repente o choro cessa. "Por Júpiter, um milagre"... Olho pro lado e vejo uma heroína em pé com um pacote de balas aberto na frente da criança.
O carinha que conversava com a loira desceu com a garota de cabelo preto. Os dois namorados ficaram a sós, num clima ameno até que ela disse alguma coisa naquele tom feminino enérgico... "Você também faz assim!", retrucou ele como um animal acuado... Ela virou o rosto para a janela. Pude ver o reflexo da tromba. Ele parecia pior: ombros encolhidos, cabeça baixa, mãos entrelaçadas entre as coxas, murcho... E assim permanecia depois de terem se levantado para sair. Esperando a porta abrir, ela o abraça em câmera lenta e lhe toca os lábios com suavidade. 










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